São Paulo, domingo, 10 de junho de 2001

Próximo Texto | Índice

OMBUDSMAN

O outro lado na lua

BERNARDO AJZENBERG

É difícil entender como um jornal consegue desrespeitar na prática, de forma explícita e concentrada, um de seus princípios mais caros.
Pois a Folha cometeu esse feito, nos oito primeiros dias deste mês de junho, com a questão do "outro lado".
Para que o leitor entenda do que se trata, peço licença para citar o "Manual da Redação" do jornal (pág. 26):
"Quando o repórter dispõe de uma informação que possa ser considerada prejudicial a uma pessoa ou entidade, é obrigatório que ele ouça e publique com destaque proporcional a versão da parte atingida".
Apenas neste mês, nove reportagens, de diferentes seções, atropelaram essa regra.
O ex-secretário da Presidência da República Eduardo Jorge Caldas Pereira foi vítima duas vezes na semana passada.
A primeira aconteceu no dia 6, quarta-feira, na reportagem "Relatório aponta "divergências" em IR de EJ", a qual informava, com exclusividade, que investigação da Receita Federal encontrou "indícios de montagem" e de "atos nebulosos" em declarações de renda de EJ.
Em cima de um texto no qual este rebatia tais acusações específicas (procedimento correto da reportagem), editou-se, no entanto, um quadro ilustrado, com resumo do suposto envolvimento do ex-secretário em outros nove casos, em diversas áreas de atuação, do escândalo da obra do TRT-SP à defesa de interesses em licitação para o Denatran.
No quadro, nenhuma linha sobre o que EJ tem alegado, em defesa de sua pessoa, nesses casos.
No dia seguinte, novo rol de acusações contra o empresário é publicado, no texto "Comissão do Senado vai reabrir caso EJ". Mais uma vez, nenhuma linha do "outro lado".

Oportunismo e covardia
As nove reportagens a que me referi foram inauguradas com texto publicado no dia 1º intitulado "Ministros condenam ataque a presidente no STF".
Tratou-se da reação do governo às críticas políticas feitas a FHC pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Rubens Approbato Machado, em discurso na posse do novo presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello.
No texto, membros do governo o acusam de oportunismo, deselegância, desrespeito e covardia -sem que ele seja ouvido.
Deve-se deixar claro que a lista de reportagens de junho que afirmo omitirem a versão dos acusados exclui os casos de publicação tecnocrática do "outro lado", procedimento também desaconselhado pelo "Manual". Segundo o seu texto, "isso (ouvir o "outro lado') não deve ser feito de forma mecânica, apenas para cumprir uma praxe técnica ou burocrática".
O que dizer, então, do último parágrafo da retranca "Outro lado" da reportagem "Resíduo tóxico contamina área rural", publicada quinta-feira?
Depois de, adequadamente, informar a posição de várias empresas que negam haver depositado resíduos numa área rural em Santo Antônio de Posse (SP), o texto conclui: "A reportagem não conseguiu contatar ou obter resposta em algumas delas porque as empresas encerram expediente às 17h". Ora, os jornalistas só trabalham depois das 17h?
Tratamento semelhante recebeu o material sobre a prisão do ex-presidente da Argentina Carlos Menem na edição de sexta-feira. Em duas páginas sobre o assunto, o único "momento" em que se dá chance ao "outro lado" está num quadro (chamado "Relações perigosas") no qual, entre outras informações, se resume a denúncia que pesa sobre o político. E o que se apresenta ao leitor como "outro lado"? "Ele nega as acusações".

Direito de julgar
Para o jornalismo, o princípio do "outro lado" não é uma questão menor. Ao contrário, diz respeito à credibilidade do jornal, do repórter, do editor.
Se encontra definição e regulamentação tão explícitas, é porque atende à idéia de que o leitor não apenas é capaz de tecer o seu próprio juízo sobre possíveis versões divergentes de um fato como também tem o direito de conhecê-las.
Mais do que isso: conforme adverte, novamente (perdoe, leitor), o "Manual" da Folha, "o outro lado também pode levar o jornalista a refazer sua apuração, ou mesmo abandonar a notícia, se trouxer uma informação procedente que desminta a perspectiva inicial da reportagem".
O poder desproporcional que a mídia possui, sua potencial capacidade para "assassinar" reputações ou levá-las para bem perto do fundo do poço têm de ser compreendidos plenamente por quem exerce o ofício.
Descartada a má-fé, pode-se concluir, com base na irregularidade jornalística sobre o "outro lado" deste início de mês na Folha, que tal entendimento nem sempre vigora -o que faz gente bem-intencionada descambar, desastrosamente, para a absoluta irresponsabilidade.



Próximo Texto: Mágica de ACM
Índice


Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor -recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman, ou pelo fax (011) 224-3895.
Endereço eletrônico: ombudsman@uol.com.br.
Contatos telefônicos: ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.