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São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003

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OMBUDSMAN

Chico e Cuba

BERNARDO AJZENBERG

"Será que ele e os demais signatários não querem assinar um manifesto pró-Fernandinho Beira-Mar também? O nível de criminalidade entre ele e Fidel é parecido."
Esse protesto foi enviado por um leitor a propósito da notícia publicada terça-feira de que o compositor Chico Buarque assinara um texto em defesa de Cuba lido no 1º de Maio em Havana. O manifesto repudia os EUA e se omite quanto à recente onda de repressão a dissidentes cubanos, com prisões e fuzilamentos. Surge num momento grave, em que celebridades culturais se dividem sobre o caso.
A mensagem revela como a imagem de um artista pode ser abalada por posicionamentos políticos. Mas mostra também outro fenômeno: o leitor confia no jornal, dá como fato o que ele publica. E aqui a coisa ficou encrencada, pois Chico simplesmente não tinha assinado manifesto algum em apoio a Cuba.
O quadro ao lado ilustra como o jornal tratou o episódio.
No primeiro dia (terça), dedicou-lhe uma chamada na capa ("Chico Buarque assina manifesto pró-Cuba") e um título de seis colunas em página interna ("Chico Buarque assina carta em favor de Cuba").
Ante o desmentido de um representante do artista, um pequeno texto saiu na quarta-feira, em pé de página ("Chico Buarque não defendeu Cuba, diz assessor"). Nele, sem lembrar que ela própria divulgara com destaque e títulos certeiros a "informação", a Folha escreve que "as agências internacionais informaram anteontem que Chico assinara a lista".
Finalmente, na sexta, uma carta do mesmo assessor no "Painel do Leitor" e um "Erramos" dão o desfecho, até aqui, para o episódio.
O editor de Mundo, Sérgio Malbergier, explica que a Folha usou informações de agências internacionais e constatou num site pró-Cuba que o nome de Chico estava na lista de apoio. Tentou ouvi-lo durante dois dias. No primeiro, não conseguiu. "Publicamos então que agências e site informavam que ele teria assinado a lista e que não havíamos conseguido falar com ele", afirma o jornalista.
No segundo dia, relata, o assessor negou que Chico fosse signatário do documento -o que foi publicado-, mas disse que ele não poderia se manifestar porque estaria concentrado na elaboração de um livro. "Fica aqui o convite para Chico se pronunciar sobre o assunto com mais clareza", conclui Malbergier.
Penso que o jornal cometeu no caso ao menos três equívocos.
O primeiro foi editar com tanto destaque, títulos e textos taxativos um dado grave não confirmado. A reportagem cita uma agência, mas apenas ao informar que, segundo ela, Chico teria sido um dos últimos a assinar o manifesto. Também registra que não conseguiu falar com o compositor, mas não explicita se o procurara para confirmar a informação ou para comentá-la. Títulos e textos mais cautelosos atenuariam o estrago.
O segundo equívoco foi quase "se esconder" no dia seguinte (quarta), publicando o desmentido do assessor apenas num pé de página e atribuindo toda a responsabilidade às agências internacionais, como se o jornal não tivesse bancado a notícia.
Claro que publicar uma carta de desmentido e um "Erramos", como ocorreu na sexta, é positivo. Mas é também pouco, reconhecimento insuficiente, desproporcional em relação ao barulho causado pelo destaque anterior -e foi esse o terceiro erro do jornal no episódio. Uma reportagem que procurasse esclarecer o caso ficou faltando, ao menos até o fechamento desta coluna.
Comecei com a mensagem de um leitor e encerro com a de um outro, cuja contundência -após a correção publicada- reflete a gravidade da questão:
"É simplesmente revoltante a agressão que a Folha cometeu contra o cantor Chico Buarque (...) uma acusação seriíssima em tempos de fuzilamento (...) A Folha pisoteou seu "Manual da Redação", maculou fortemente a imagem de Chico e desrespeitou qualquer princípio básico do jornalismo, da ética e do bom senso (...) O que aconteceu é imperdoável, inadmissível, inacreditável. Resumindo, é de enojar, revolta o estômago. Estragou minha manhã, meu humor, meu dia."
Não sei se Chico Buarque ainda vai ou não se manifestar sobre a repressão castrista nem o que ele pensa a respeito dela.
Mas esse e-mail -apesar de algum exagero nos adjetivos- dá o que pensar sobre a responsabilidade que o jornal tem perante seus leitores e perante os protagonistas de suas notícias.



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