São Paulo, domingo, 12 de agosto de 2001

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OMBUDSMAN

Homenagens e obituários

BERNARDO AJZENBERG

É humano louvar um morto. Quanto mais "ilustre" e popular ele seja, mais abrangente a homenagem.
Não espanta, portanto, a dimensão dada terça-feira pela imprensa à morte de Jorge Amado. Horas de TV e rádio, internet, suplementos, destaque inusual nos jornais.
Todos tiveram tempo para preparar o material antecipadamente, já que o escritor dava sinais, havia meses, de que não resistiria por muito tempo.
Mesmo assim, houve surpresas, infelizmente, desagradáveis, ao menos na Folha, inclusive em seu caderno especial.
A mais chocante foi a eleição de um texto-depoimento do escritor Paulo Coelho como obituário único e destacado na Primeira Página, logo abaixo da notícia propriamente dita.
Todo brasileiro que aprecia livros -a começar por ele próprio- sabe que o autor de "As Valkírias" está longe de ser um crítico ou estudioso, autoridade literária, acadêmica, ou ainda um ficcionista cujas obras se cruzem com as de Amado.
A única real aproximação entre as duas figuras está na quantidade de livros vendidos.
A decisão de alçar o depoimento de Coelho, em meio a tantos outros, para o espaço mais nobre do jornal (sua capa) denota, péssimo sinal, uma opção pela valorização do mercado, daquilo que vende, independentemente do que o autor represente.
O resultado foi, mais, uma homenagem a Coelho do que a Amado. Em crítica interna, caracterizei tal inusitada seleção como uma "rendição cultural".
É irônico que, na quarta-feira, o jornal "Valor" tenha trazido uma reportagem com o seguinte título: "Morto Jorge Amado, Paulo Coelho é o rei definitivo", sobre vendagem de livros.
Coelho não tem nada a ver com isso, diga-se bem claro. Faz o seu trabalho. O problema esteve na edição do jornal, que, não duvido, ele mesmo deve ter estranhado.
Afora alguns dados equivocados (corrigidos depois em "Erramos"), a Folha emplacou outro engano: o de produzir um caderno no qual a louvação recebeu espaço exagerado, em detrimento de textos críticos e aprofundados sobre Amado.
O "Jornal do Brasil", "O Globo" e "O Estado de S.Paulo" trouxeram mais elementos de distanciamento e análise do autor do que a Folha -contrariando, enfatize-se, uma tradição que parece definhar.
Ninguém na Folha escreveu a fundo sobre a literatura de Amado, seus itens negativos e positivos, altos e baixos. Só de raspão se mostra ao leitor a relação entre obra e atuação política, suas oscilações atreladas.
Não foi Rachel de Queiroz, por exemplo, quem introduziu Amado no comunismo, ainda jovens? Não é a autora outra expoente do regionalismo?
Por que ela só aparece em algumas linhas, perdida entre outros autores e personalidades na chamada "repercussão"?
Por falar em "repercussão", pergunto: por que o jornal, em vez de ecoar previsíveis ladainhas (tipo "a literatura mundial perde a referência de um Brasil sem caricaturas, de alguém que descrevia com genialidade o povo brasileiro..."), não trouxe uma saída enriquecedora, fazendo, por exemplo, perguntas específicas a certas pessoas sobre determinados aspectos da obra, sua importância nisso ou naquilo, qual o legado dele para a literatura brasileira etc?
Destaque-se, por fim, que os textos editados sob o título "Folha publica dois trechos inéditos" não são inéditos.
O próprio jornal já os havia publicado em edição sobre Amado no Natal de 1994 (veja acima). Além disso, eles foram retomados em 1997 em edição sobre o autor nos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles.
A Folha acertou ao dar a morte de Amado como manchete, enquanto outros jornais não o fizeram. Publicou um caderno que satisfaz como referencial (números, relação de obras, cronologia, fotos).
Mas pecou nos itens apontados acima, deixando de levar ao leitor um produto mais denso, arranhando, com isso, muito de sua tradição.



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