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Gato escaldado
O jornal pede com razão que a PF seja menos leviana, mas não hesita em publicar dados que vazam a conta-gotas de inquéritos inconclusos
A FOLHA NOTICIOU, na
quinta-feira, que a Polícia Federal havia quebrado o sigilo do telefone de
sua Sucursal de Brasília instalado no comitê de imprensa da
Câmara dos Deputados e do
celular de uma de suas repórteres. Os números estavam na
memória do celular de Gedimar Passos, um dos petistas investigados pela tentativa de
compra de um dossiê contra
tucanos durante a eleição. De
acordo com a PF, foi pedida, e
concedida pela Justiça, a quebra do sigilo de 168 números,
entre eles os da Folha.
A PF alegou que não sabia
que os telefones eram do jornal e informou que descartou
qualquer investigação assim
que constatou que as ligações
foram feitas depois das prisões. Deduziu que eram para
obter mais informações sobre
o caso. Em nota oficial, a PF
afirmou que não teve a intenção de investigar o jornal. O
delegado responsável pelo inquérito justificou que apenas
cumprira um procedimento
padrão ao pedir a quebra do sigilo. O diretor-geral da PF,
Paulo Lacerda, considerou que
a ação do delegado estava
"dentro do razoável".
Embora garanta que não
prosseguiu na investigação da
Folha quando percebeu que os
telefones eram da empresa, as
informações obtidas na quebra
do sigilo constam do relatório
feito pelo setor de inteligência
da PF, incluído no inquérito
policial e remetido à CPI dos
Sanguessugas.
A Folha reagiu, como é do
seu estilo sempre que se sente
atacada. Falou pela empresa,
na quinta-feira, o seu diretor
jurídico, Orlando Molina: "A
quebra do sigilo de telefone
utilizado por profissionais da
imprensa importa em monitoramento abusivo da atividade
jornalística, o que sem dúvida
configura violação do sigilo da
fonte, previsto na Constituição
e na Lei de Imprensa". O jornal
publicou uma página sobre o
caso na quinta-feira, outra na
sexta, além de um editorial
("Direitos ameaçados"), e ouviu advogados, ex-ministros da
Justiça e associações de classe
que condenaram a ação da polícia por considerá-la um cerceamento à liberdade de imprensa. Na nota que divulgou,
a PF afirmou que "entende da
maior importância o primado
das liberdades de imprensa e
expressão na vigência do Estado Democrático de Direito". O
ministro da Justiça declarou
que tem "o maior respeito pela
imprensa" e atribuiu a uma
"ressaca pós-eleitoral" a tensão que marcou a relação entre
governo e imprensa nos últimos dias.
Os leitores
Os leitores que escreveram
para o ombudsman se dividiram diante da notícia e de sua
repercussão. Alguns foram solidários com o jornal. "No que
concerne à quebra de sigilo da
Folha, merece uma ação dura
para inibir tais procedimentos
ou será muito tarde" (não me
sinto em condições de identificar os leitores que citarei porque não tive condições de obter autorização). "Como mandar grampear os telefones sem
apontar os proprietários ou assinantes? Se isso fosse legal,
não haveria empecilho para a
polícia fornecer o número do
telefone do presidente da República omitindo esse fato do
juiz e solicitando a quebra do
sigilo."
Vários leitores reagiram mal,
reavivando o clima hostil dos
últimos dias da campanha eleitoral. "Logo a Folha, que vive
bisbilhotando a vida das pessoas, divulgando informações
vazadas ilegalmente, muitas
delas protegidas por sigilo, vir
agora fazer um estardalhaço
porque um telefone seu, instalado sabe-se como dentro de
um órgão público, foi incluído
numa relação de mais de 100
telefones que tiveram sigilo
quebrado??!!" Outra leitora
considerou a reação do jornal
um "despropósito" e um "exagero": "A Folha tentou transformar marola em maremoto".
Não acho que a Folha tenha
exagerado a reação no primeiro dia, quando noticiou a quebra do sigilo. É legítimo que tenha se defendido de uma ação
que, independentemente da
intenção dos policiais, violou o
direito constitucional de proteger a fonte. O noticiário de
sexta abre espaço para as razões da Polícia Federal. Ontem
o caso já esfriava.
Contradição
Há, no entanto, um aspecto
nesse caso que exige a reflexão
da Folha e dos outros meios.
No caso da Folha, há uma contradição grave entre a opinião
do jornal, expressa em seus
editoriais, e a prática jornalística. O editorial "Direitos
ameaçados", de sexta-feira, defendeu, e não foi a primeira
vez, uma premissa que considero correta: "O despreparo e
o comodismo de policiais que
confundem investigação com
quebra de sigilo a mancheias,
endossados pela atitude de Pilatos de muitos juízes, constituem ameaça constante aos direitos dos cidadãos no Brasil".
Faltou acrescentar: e a imprensa se beneficia desses expedientes. Agora mesmo, na
investigação do dossiê, e em
casos antigos, como o de
Eduardo Jorge (governo
FHC), constatamos a contradição. O jornal pede, com razão, que a polícia (acrescento:
e o Ministério Público, e a Justiça e as CPIs) seja menos leviana, mas não hesita em publicar as informações que vazam a conta-gotas, sem qualquer prova, de inquéritos inconclusos. E, no caso do dossiê, são informações que resultam da quebra dos sigilos telefônicos dos ex-petistas envolvidos na trama. Algumas
notícias chegam a ser incompreensíveis, tão fragmentadas
e incompletas estão.
Vários leitores tocaram nesse ponto. Concluo com a reprodução de um trecho de
uma das mensagens: "Nenhuma pessoa em sã consciência
pode concordar com qualquer
abuso de autoridade que ponha em risco as liberdades democráticas. Entretanto, nos
últimos anos e, principalmente, durante o processo eleitoral, jornais como a Folha e o
"Estado de S. Paulo", além de
revistas como a "Veja", criaram
a figura da "presunção de culpa". Todos eram culpados até
que se provasse o contrário. O
ônus da prova passou a ser do
acusado e não do acusador. E
as manchetes dos jornais foram fartas nessa direção (...).
Até provas consideradas ilegais pela Justiça vieram às páginas dos jornais, atitude defendida com base na liberdade
de imprensa. Agora, a Folha é
vítima do próprio instrumento
que alimentou e fortaleceu nos
últimos tempos. Mesmo assim
somos solidários ao jornal,
pois não concordamos com esse tipo de atitude".
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Marcelo Beraba é o ombudsman da Folha desde 5 de abril de 2004. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Não pode ser demitido durante o exercício da função e tem estabilidade por seis meses após deixá-la. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores, recebendo e verificando suas reclamações, e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
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