São Paulo, domingo, 14 de julho de 2002

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OMBUDSMAN

Bulhufas

BERNARDO AJZENBERGP Jornal não é TV. Reportagem não é telenovela. Mas ocorre com frequência leitores chegarem ao final de um texto com a sensação de que alguma coisa importante, às vezes essencial, ficou faltando; de que só o capítulo seguinte poderia, talvez, preencher o vazio deixado.
Se na ficção da TV o suspense provém de um artifício, parte do jogo -segredo, até, de sucesso- , no jornal é diferente: a lacuna pode ser resultado, simplesmente, de uma falha.
Dois exemplos retirados da Folha da semana passada:
Na segunda-feira, o jornal publicou uma reportagem sobre a Conferência Internacional de Aids, que se realizava em Barcelona (Espanha). Título: "ONU elogia programa brasileiro de Aids".
Quem acompanha o assunto de perto certamente conhece como funciona o chamado modelo brasileiro de "troca de seringas". Mas, para a imensa maioria de leitores, ele não passa de um rótulo.
Num momento como esse, o jornal estaria mais a serviço de seus leitores se ao menos explicasse como se estrutura, de que verba dispõe, como se articulam os diversos organismos atuantes nesse programa. Tais informações, porém, não constam da matéria.
A notícia está lá? Sim. Havia erros? Nada indica. Mas deu mesmo para entender o assunto? Nem tanto.
Na quinta, um texto anunciava: "Europa propõe corte de subsídio agrícola". Notícia importante, referente à Política Agrícola Comum (PAC), com possíveis consequências para a agricultura brasileira.
Nenhuma explicação havia, porém, sobre o que é, como se formou e como são postos em funcionamento os mecanismos da tal PAC.
Por mais que quisesse, o leitor não encontraria, ali, elementos para se aprofundar minimamente sobre o assunto e captar por que, por exemplo, a França é um dos países que mais se opõem a essa mudança.

Telefone dental
Ocorre-me, também, uma pequena e interessante nota publicada na Folha Equilíbrio de 27/ 6 sob o título "Telefone dental":
"Engenheiros ingleses criaram um telefone para ser implantado no dente. Trata-se de um pequeno vibrador e de um receptor de ondas de rádio. Para "instalá-lo", basta passar no dentista. Os criadores antecipam que esse será o primeiro implante não-médico a ser colocado no corpo".
Dá a impressão de que o tal celular já está disponível, bastando, para tê-lo, "passar no dentista".
Dois dias depois, porém, li reportagem em outro jornal ("O Estado de S.Paulo", reproduzindo texto da agência "Associated Press"), segundo a qual se trata apenas de um protótipo, cuja fabricação não teria sido, ainda, anunciada por nenhuma empresa.
A Folha publicou a notícia antes -e isso tem seu mérito. Mas pecou ao não deixá-la clara. Numa comparação bem cartorial, é como preparar um contrato, enchê-lo de carimbos e submetê-lo às partes, para assinatura, com as datas de pagamento/recebimento em branco.
Verdade que, se texto de jornal não é novela de TV, tampouco se pode pensá-lo como tese acadêmica. Certo grau de superficialidade faz parte do produto.
O desafio, para o jornalista, é, dentro dessas limitações, embutir no texto o máximo possível de histórico e contextualização dos acontecimentos, para que a notícia principal, concentrada, em princípio, no título, não resulte numa abstração, um dado, em última instância, virtual.
Se fosse possível a certeza de que todas as dúvidas encontradas ao longo da leitura de um diário seriam sanadas nas edições seguintes, nada disso teria importância. Mas a verdade, como se sabe, está bem longe daí.
Cabe ao jornal o empenho para evitar uma deglutição de notícia enganosa, aquela em que o leitor, ingenuamente, crê ter captado tudinho, quando, na realidade, ficou sem entender bulhufas.


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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor -recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman, ou pelo fax (011) 224-3895.
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