São Paulo, domingo, 14 de novembro de 2004

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A imagem da guerra

Na quarta-feira os leitores voltaram a se manifestar, desta vez contra a publicação de uma foto do "New York Times" em Mundo. A imagem, que rasga a página A10 do alto até abaixo da dobra, mostra soldados dos Estados Unidos que dominam uma calçada de Fallujah, no Iraque, e dois corpos de iraquianos mortos no chão.
É comum que leitores reclamem quando o jornal publica imagens de guerra. São sempre chocantes. Quase sempre a publicação é justificada pela denúncia das atrocidades. Mas às vezes parecem, pela repetição rotineira de cenas degradantes e extremamente violentas, desnecessárias e redundantes.
Nesse caso específico a imagem é de um impacto muito forte porque um dos mortos está em primeiríssimo plano, de olhos abertos; e o outro tem a cabeça arrebentada e sangra.
Os leitores que escreveram ou telefonaram chocados consideraram que Folha foi "sensacionalista" ao publicar a foto.
Marco Chaves é assinante do jornal. Sua reação: "Nunca me senti tão indignado ao ver fotos de pessoas mortas como hoje. Não creio que o jornal necessite de algo deplorável como isso para vender e também não acredito ser necessário receber esse tipo de informação visual, que não agrega nada e somente banaliza a violência".
Doris Satie Fontes faz outro tipo de ponderação: "Já sabemos que guerras são terríveis e absurdas. Neste caso, em particular, já estamos cansados, inclusive, do tema!". Outra leitora, e não obtive autorização para identificá-la, argumenta: "Penso que a Folha esteja com a intenção deliberada de direcionar seus leitores contra a invasão norte-americana do Iraque, mas creio que há outras formas mais polidas de tratar do assunto, e logo pela manhã".

Memória visual
Levei essas questões e impressões para o editor de Fotografia da Folha, Toni Pires. Sua resposta: "Realmente a foto é chocante, e não é sempre que publicamos esse tipo de imagem. Chegam até nós diariamente muitas imagens clichês da guerra. Essas, os leitores já decodificaram e não mais se chocam. Em alguns momentos, vejo a necessidade de mostrar os fatos "mais de dentro". Os últimos acontecimentos no Iraque são a demonstração de atos bárbaros praticados por ambos os lados envolvidos. As poucas imagens diferentes que recebemos nos mostram um cenário de horror. Acredito que, por mais inquietante e doloroso que seja para o leitor, é nosso papel mostrar algo mais. Não com o objetivo simplista de uma certa estética do horror. Mas com o compromisso de levar até o leitor um pouco mais do que o simples comentário ilustrativo. São fotografias que devem ser lidas e entendidas como a memória visual de nossa época. Não acho que devamos sair publicando esse tipo de imagem todos os dias, mas vejo importância de, em determinados momentos, enfrentarmos o desagrado e o incômodo. O que mostramos é nada perto do que está acontecendo. Afinal, 600 iraquianos já foram mortos em Fallujah, segundo os EUA, em apenas quatro dias de combates".
O assunto é antigo e já foi discutido por outros ombudsmans. Como conciliar o respeito à sensibilidade dos leitores com a responsabilidade de revelar os horrores de guerras e atentados? É difícil, e não há uma fórmula que oriente a decisão do editor. Alguns jornais se guiam pelo que os americanos chamam, de brincadeira, do teste do café da manhã. Qual será a reação do leitor no desjejum? Mas esse não pode ser o único critério.
Em março, os iraquianos, nessa mesma Fallujah, queimaram, arrastaram pelas ruas e penduraram em uma ponte sobre o rio Eufrates os corpos de quatro americanos. Era o início da insurreição na cidade, que depois seria completamente dominada pelos iraquianos, e as fotos eram um documento chocante da barbárie.
A imagem de quarta-feira dos iraquianos mortos e abandonados não tem o mesmo peso porque eram soldados anônimos -mais dois. Mas é igualmente um atestado da mesma estupidez.
O jornal poderia ter escolhido uma foto menos explícita? Poderia ter dado sem tanto destaque? Poderia. Mas, ao publicar, avalio, erra menos pelo excesso do que erraria pela omissão.

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