São Paulo, domingo, 16 de agosto de 2009

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CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ombudsman@uol.com.br

A bola corre mais que os homens


A Folha erra quando usa a estatística como elemento superior à imprevisibilidade de uma partida de futebol


NO DOMINGO PASSADO , a reportagem de apresentação do jogo entre São Paulo e Goiás pelo Campeonato Brasileiro abria assim: "Mais do que tentar emplacar a quinta vitória seguida e engrenar de vez no Campeonato Brasileiro, o São Paulo entra em campo hoje contra o Goiás, às 18h30, no Morumbi, para atingir uma marca histórica: completar mil jogos na principal competição do país".
A meu ver, a frase simboliza uma inversão de valores jornalísticos que vem se firmando na cobertura de esportes da Folha há muitos anos: considerar o que é interessante, mas complementar (retrospecto histórico, marcos estatísticos), mais importante do que o fundamental (o fato, o acontecimento).
Como seria possível o São Paulo não atingir a "marca histórica" dos mil jogos, exceto se não entrasse em campo para jogar? Como seria possível considerar mais importante simplesmente acabar a partida, e não vencê-la e, em consequência, atingir o grupo dos quatro primeiros do campeonato?
Claro que alguns eventos numéricos são mais importantes do que o evento. Por exemplo, todo mundo se lembra do milésimo gol de Pelé (registrado no documentário indicado ao fim deste texto) e quase ninguém do placar daquele jogo do Santos contra o Vasco, que ocorreu 40 anos atrás, no Dia da Bandeira (19 de novembro).
Faz quase um quarto de século que esta Folha resolveu dar ênfase às estatísticas na cobertura esportiva. A Redação pediu ao Datafolha para fazer a computação de tudo o que acontecia nas partidas. E o jornal publicava com destaque os resultados aferidos.
À época, o jornal foi ridicularizado pela maior parte da crônica esportiva por estar burocratizando o que devia ser apenas arte. Um pouco, aliás, como os técnicos de futebol eram acusados de fazer com a própria modalidade.
Acho que a Folha acertou ao apostar num tratamento mais frio, objetivo, comprovável do que até então era basicamente cuidado com impressionismo, paixão, palpite.
Mas erra quando usa a estatística como elemento superior ao que faz do futebol provavelmente seu maior atrativo, que é o fato de a bola correr mais do que os homens, como diz o título do livro recomendado abaixo, ou seja, a absoluta imprevisibilidade do que vai acontecer em campo a cada 90 minutos, apesar de todas as séries estatísticas e dos retrospectos numéricos.
Os exemplos são inúmeros. Vou citar só um. Em 25 de fevereiro, o jornal destacou que o São Caetano era o time no Campeonato Paulista que tinha jogado as partidas com menor número de gols, o que permitia antever um placar apertado para o jogo daquele dia contra o Palmeiras, que acabou sendo o mais dilatado da competição (4 a 3).
Como explica Roberto DaMatta, "o que conta no futebol não é bem a treinada vontade humana, mas a sensual e caprichosa bola. Bola que simboliza a gratuidade da vida e, de quebra, representa a sorte e o azar".

PARA LER
"A Bola Corre Mais que os Homens", de Roberto DaMatta, Rocco, 2006 (a partir de R$ 21,73)

PARA VER
"Pelé Eterno", de Anibal Massaini Neto, 2004 (em locadoras de vídeo e em sites de compra e venda)


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