São Paulo, domingo, 17 de junho de 2001

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OMBUDSMAN

Um desperdício engajado

BERNARDO AJZENBERG

A conquista, na certa fruto de forte empenho, merecia comemoração. Todo jornalista almeja entrevistar ao longo da carreira pelo menos uma personalidade de peso. E ali estava a possibilidade batalhada.
O resultado no jornal, porém, ficou perigosamente aquém.
Refiro-me ao "pingue-pongue" publicado na Folha no último domingo com o líder palestino Iasser Arafat -"Israel ainda não reconhece nosso direito a um Estado".
Aquilo que poderia resultar, sem exagero, num furo internacional virou peça publicitária do presidente da Autoridade Nacional Palestina; resumo do que ele declara há anos ou décadas, dando ensejo, por isso, a um título com tom de coisa vista.
Por quê?
Porque as perguntas a ele dirigidas não foram se não tiros de escanteio cobrados na medida para o político cabecear em gol.
Quando li o texto, veio-me à lembrança, de imediato, a entrevista que eu havia lido no dia 21 de abril no jornal francês "Le Figaro" com o primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon.
Difícil saber, entre Sharon e Arafat, quem é mais "raposa". São expressões de décadas de um conflito interminável, cuja solução parece a cada dia mais distante. Entrevistá-los, portanto, não é tarefa fácil. Mas fazer bom jornalismo não é nada fácil.
Veja bem, leitor: refiro-me apenas à entrevista, sem entrar em detalhes quanto à docilidade expressa na reportagem a ela anexa -que descreve o lado "humano" de Arafat acriticamente, em texto cheio de encantamento- ou à Arte da cronologia do dirigente, meramente descritiva, sem feito questionável; ou, ainda, ao suposto "outro lado", texto cuja metade expõe tudo menos a posição israelense.

Tom amador
Uma olhadela no quadro acima permite ao leitor entender do que estou falando.
As seis perguntas feitas pela Folha a Arafat têm um tom quase estudantil, amador, para não dizer que podem até parecer encomendadas ou aprovadas previamente pela assessoria do líder palestino. Para deixar claro, não digo que assim foi, mas que pode parecer ter sido, pode.
Não vai, aqui, uma crítica individual ao repórter -no caso, um conhecedor do conflito no Oriente Médio, Paulo Daniel Farah, que merece menção pela conquista da entrevista-, mas ao jornal como um todo.
Uma entrevista com alguém como Arafat não é todo dia que se consegue, ainda mais em meio a uma situação de conflito, com a tensão em alta. Ela é, evidentemente, necessária e bem-vinda.
Pergunto: diante da possibilidade -conquistada- do encontro, terão sido feitas discussões à altura, uma preparação adequada para que um quadro do jornal pudesse tirar o máximo dele? Pelo resultado, a resposta é negativa.
As perguntas do jornalista do "Figaro" a Sharon (o quadro acima contém apenas uma seleção) trazem outro sabor.
Independentemente das respostas que tenham suscitado, são de longe mais instigantes, capazes de provocar um rendimento muito maior em termos jornalísticos.
Não foi por acaso que a entrevista da Folha com Arafat recebeu entusiasmada carta, publicada no Painel do Leitor quinta-feira, do deputado estadual do PC do B Jamil Murad.
Após elogiar a "excelente entrevista", o missivista conclui: "A Folha, através dessa entrevista, deu oportunidade para que seus leitores conheçam melhor essa dura realidade, pelo que manifesto minha gratidão".
O deputado, como qualquer leitor, tem o direito de gostar daquilo que quiser gostar e de expressar sua opinião. Isso é tão óbvio quanto sagrado.
Mas não deixa de ser sintomático que elogio tão rasgado provenha de um militante, justamente, da causa palestina, como são os militantes de seu partido.

Conflito e calor
Para ser rentável em termos jornalísticos, para justificar espaço em jornal amplo, que busca imparcialidade, uma entrevista precisa ter calor e contraditórios.
O entrevistado deve ser surpreendido, questionado pelo jornalista. Tem de haver conflito. Só daí pode resultar algo novo -e, infelizmente, não foi o que aconteceu.
Caso a Folha venha a fazer uma entrevista com Sharon, por exemplo, convém que ao menos se inspire um pouco no "clima" das perguntas do "Le Figaro".
Reproduzir em um eventual caso de Sharon a parcialidade que o material sobre Arafat embutiu seria repetir o erro, reeditar um desperdício.


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