São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2008

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CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA - ombudsman@uol.com.br

Afogado em números


Diante da inevitabilidade de ter de enfrentar os números, muitos jornalistas escolhem simplesmente despejá-los na cabeça do leitor

A CONVIVÊNCIA entre jornalistas e números freqüentemente não é pacífica. Muitos dos que se dedicam a este ofício decidiram-se por ele ao descobrirem, cedo, sua incompatibilidade com a aritmética.
O drama é que a complexidade matemática da sociedade contemporânea é crescente. O jornalista alheio ou hostil aos números pode prejudicar gravemente o leitor.
No dia 6 de agosto, a Folha publicou duas reportagens baseadas em estudos basicamente numéricos. Errou ao dar manchete ao "mapa da violência em São Paulo", extraído a partir de dados até então inéditos da Secretaria da Segurança Pública do Estado e relegar a uma chamada pesquisas da FGV e do Ipea sobre crescimento da classe média e diminuição da miséria no país.
O erro, objetivo, foi dar prioridade a um material que se circunscreve a uma cidade, não traz novidades significativas e tem impacto relativamente restrito para o futuro em detrimento de outro, que é o inverso.
O pior é que o próprio "mapa da violência", em si útil, relevante e elogiável esforço de reportagem, foi prejudicado por ingenuidade matemática.
A divulgação de totais brutos de ocorrências de crimes por bairros sem a ponderação proporcional pelo número de habitantes distorce qualquer conclusão comparativa com outros bairros.
Como afirmou o leitor Persio Piccinini Mota, "dizer que numa região tem 300 furtos e noutra tem 400 furtos, só que uma tem o dobro de gente da outra, não as coloca numa mesma equivalência..., cria preconceitos com bairros já bastante sofridos e, principalmente, contra pessoas pobres que moram nestes bairros".
Era indispensável relativizar os dados brutos com a utilização de taxas por cem mil habitantes, referência consensual da ciência nesses casos. Se isso é impossível porque os distritos policiais têm fronteiras diversas dos distritos do IBGE ou da prefeitura, era melhor ou ater-se ao total do município ou buscar alguma alternativa aceitável.
Alertado para o equívoco, o jornal reagiu na defensiva, respondeu mal a queixas justas e atacou o governo por retardar a divulgação de estatísticas mais abrangentes.
Piccinini Mota critica com razão o que chama de "estatísticas preguiçosas". Diante da inevitabilidade de ter de enfrentar os números, muitos jornalistas escolhem simplesmente despejá-los na cabeça dos leitores.
São raros, por exemplo, esforços para dar materialidade aos bilhões de reais ou dólares freqüentemente citados em notícias sobre orçamentos e projetos e que não fazem nenhum sentido concreto para a maioria dos mortais, cujas verbas se limitam, no máximo, às dezenas de milhares.
No caso específico de noticiário sobre crimes, no qual a imprensa em geral, a Folha inclusive, tem uma antiga e imensa dívida de qualidade com o país, a matemática pode ajudar muito a saldá-la.


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