São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

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OMBUDSMAN

Erros

BERNARDO AJZENBERG

Foi-se o tempo em que um jornal podia se contentar com o relato fiel dos fatos e a emissão de opiniões. Isso continua imprescindível, mas já não basta.
Diante da profusão inédita e cada vez mais intensa de dados e informações por diversos meios -rádio, TV, internet, para mencionar apenas os mais abrangentes-, diante da sofisticação imposta à imprensa pela concorrência, a qualidade de um jornal tende a ser determinada pela sua capacidade de trazer informações exclusivas, de selecionar aquilo que realmente importa, de apresentar notícias com precisão, clareza e didatismo, de analisar os acontecimentos de modo contextualizado e fornecer a seus leitores subsídios para formar opinião ou adotar opções práticas no dia-a-dia.
Por suas características, o jornal é, dentre os meios de comunicação, aquele que mais pode e deve cumprir essas exigências. Disso depende, crescentemente, sua própria utilidade.
Na semana passada, a Folha mostrou em diversas ocasiões que, se tem conseguido levar ao seu público informações exclusivas, reportagens relevantes e diversidade de opiniões, tem também pecado com perigosa constância nos demais quesitos.
Pegue-se o caso do novo Plano Diretor, enviado à Câmara Municipal pela prefeitura paulistana na sexta-feira (10).
Enquanto outros jornais trouxeram a notícia já no sábado (11), a Folha só deu a informação na terça-feira (14). Ainda assim, somente na última sexta (uma semana depois) o jornal conseguiu mostrar com didatismo os pontos mais polêmicos do projeto (concentrados na sua seção 5, referente ao chamado "coeficiente de aproveitamento" dos terrenos).
Na mesma terça (14), publicaram-se as mudanças previstas para o largo da Batata (também em São Paulo). Diferentemente da concorrência, o jornal foi incapaz de exibir uma maquete ou um croqui de como a região deverá ficar.
Os leitores ficaram sabendo, na quinta-feira, em curiosa reportagem, que a "família Scolari" faz restrições à bola que será usada na Copa do Mundo. Os jogadores, revelou o jornal, consideram que ela é "grande e leve".
A matéria, porém, não apontou o que isso significa na prática: quanto essa nova bola é maior ou mais leve, por exemplo, do que as bolas usadas na Copa do Brasil ou no torneio Rio-SP?

FBI, CIA, ANP
O noticiário de Mundo também sofreu com essa dificuldade para ruminar a notícia, essa ausência de reelaboração, uma espécie de acomodação ao pré-fabricado.
Diante de pressões internas e externas, Iasser Arafat, presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), chegou a anunciar que fará reformas institucionais no governo dos territórios palestinos.
O jornal publicou suas intenções (depois adiadas) na quinta e na sexta, mas, em nenhuma dessas edições, explicitou quais são, afinal, as instituições existentes naqueles territórios, quando se formaram, como elas funcionam.
Quantos leitores da Folha, até mesmo entre aqueles que mais costumam acompanhar esse noticiário, sabem como se estrutura o governo palestino? Para dar outro exemplo: o que permite à Folha falar em "poderes ditatoriais" de Arafat, líder eleito em 1996?
Quando surgiram, nos jornais de quinta e de sexta, as notícias de que o governo dos EUA fora alertado de alguma forma pela CIA e/ou pelo FBI, antes do 11 de setembro, a respeito de possíveis sequestros de aviões e ataques terroristas por parte de pessoas ligadas a Osama bin Laden, a Folha deixou de informar como se constitui, ao menos formalmente, o sistema de inteligência norte-americano.
Qual é a relação entre a CIA e o FBI? A quem respondem essas agências? Por que faz sentido pensar que elas deram trombada ou ao menos não conseguiram trabalhar em conjunto no caso específico da prevenção a ataques terroristas?
Na reportagem de quinta-feira sobre a inauguração de um comitê do PSDB em Brasília, durante a qual um protesto reuniu uma centena de mata-mosquitos (agentes contra a dengue dispensados pelo governo federal em 1998), afirma-se que entre os 6.000 mata-mosquitos de quem o governo federal tentava se livrar desde 1991, "foram identificados traficantes de drogas, assaltantes", sendo a grande maioria "constituída de cabos eleitorais de políticos de diversos partidos".
Pode até ser verdade, mas um leitor que escreveu ao ombudsman sobre o assunto se sentiu no direito, corretamente, de perguntar: "O que sustenta essa afirmação? Quem eram esses criminosos? Quando foram identificados?"
Pode-se argumentar, em todos esses exemplos, que não houve, necessariamente, erro. E justamente aí reside o problema.
Hoje, mais do que nunca, num jornal que se compromete com o refinamento e o aprofundamento de suas abordagens, erro não é apenas informação errada.
Parcialidade é erro. Imprecisão é erro. Hermetismo é erro. Falta de transparência é erro. Tratamento obscuro da notícia, que menospreze a interlocução com o leitor, é erro. É um erro deixar-se satisfazer por coberturas superficiais.
Podem não ser tão visíveis ou chamativos quanto os erros factuais, e certamente não golpeiam tão de imediato a credibilidade do noticiário. Mas, a médio e longo prazo, seu acúmulo concorre para bombardear igualmente a força e a qualidade do jornal.



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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor -recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman, ou pelo fax (011) 224-3895.
Endereço eletrônico: ombudsman@uol.com.br.
Contatos telefônicos: ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira.


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