São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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OMBUDSMAN

O trivial insosso

BERNARDO AJZENBERG

Há quem entre no jogo para ganhar; há quem entre apenas para não perder.
Assim ocorre também no jornalismo diário. E, aqui, a diferença entre essas duas posturas básicas é a de apresentar ao leitor um prato rico, diferenciado, ou repetir-lhe o consensual, o arroz-com-feijão.
Exemplo de um jornalismo que vai a campo só a fim de cumprir tabela aconteceu no noticiário da última quarta-feira sobre a posse do novo presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), em Brasília.
Ali estavam o presidente da República, 11 ministros, 500 empresários, além do deputado federal José Dirceu (PT) e do vice de Lula, José Alencar (PL).
A reportagem da Folha sobre o evento ("Pessimismo "irrita", diz presidente") ocupou 84 linhas, cercando um boxe (texto menor) com 44 linhas. Desse total de 128 linhas, 121 eram dedicadas a palavras de Fernando Henrique Cardoso.
A fotografia a ilustrar a cerimônia -imagem previsível, protocolar- mostrava FHC cumprimentando o deputado Armando Monteiro (PMDB), novo comandante da CNI, e só.
Mesmo tendo o jornal enviado ao local do encontro quatro repórteres, além do fotógrafo, o leitor da Folha não ficou sabendo que Dirceu se sentou durante todo o evento na primeira fila ao lado do empresário Antonio Ermírio de Moraes (o maior apoiador assumido da candidatura de José Serra no meio industrial), o qual também discursou.
Que o ministro da Fazenda, Pedro Malan, cumprimentou o presidente do PT, mão estendida e sorriso no rosto, contra uma face carrancuda do outro lado.
Tampouco ficou sabendo o que diz e o que pensa o próprio presidente da CNI, estrela principal, em tese, do acontecimento.

Interrogações
Ora, alguém é capaz de imaginar que um encontro desse porte, com tal mistura de gente, a 12 dias do segundo turno, só propicie de interessante para conhecimento do leitor um discurso presidencial, por mais contundente que este possa ter sido? É subestimar demais a realidade.
Dirceu e Ermírio conversaram? Não se sabe. Quem mais discursou? Não se sabe.
Por que não havia ali ninguém da cúpula do PSDB ou da campanha de Serra, fora, obviamente, FHC? Ou havia? Não se sabe.
Malan disse algo a Dirceu ou a Alencar? Não se sabe.
Dirceu aplaudiu FHC e Ermírio? Não se sabe.
Dentre as centenas de empresários presentes, havia alguns com "bottons" desse ou daquele candidato? Qual era o "clima" entre eles? Não se sabe.
A Folha bateu o recorde de ocupação de espaço com FHC na reportagem sobre o evento, mas os outros jornais não fizeram muito diferente -à exceção do "Globo", que mostrou imagens de Dirceu com Ermírio e com Malan, inclusive na sua capa.
Eis um jornalismo de agenda, cego ante o imprevisto, incapaz de captar humores, desprovido de observação viva, insensível diante do significado político e simbólico de movimentações inesperadas.
Será que os leitores não merecem mais do que esse insosso trivial variado, cuja ausência de inspiração nenhum Romanée-Conti seria capaz de compensar?



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