São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2004

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A ira dos leitores

O jornal "O Globo", do Rio, publicou, na primeira página de sua edição de segunda, dia 15, duas fotos do assaltante Rafael da Silva Alves. Na primeira, ele acabava de ser preso depois de assaltar um casal de turistas chilenos e era levado para a delegacia por três policiais. A foto seguinte mostrava o assaltante, dentro da delegacia, com o olho direito inchado.
A reportagem não usa a palavra tortura, apenas testemunha que o preso chegou bem, que meia hora depois foi apresentado à imprensa com o rosto vermelho, e que, 20 minutos após, voltou a ser apresentado com o olho direito fechado e inchado. Segundo a reportagem, a polícia negou qualquer agressão.
Não é a primeira vez que um jornal flagra um preso machucado dentro de uma delegacia. O interessante neste caso foi a reação de indignação e revolta que as fotos provocaram nos leitores do jornal. Como era feriado, não foi uma reação imediata. Mas na quarta-feira, a seção "Carta dos Leitores" trazia 21 mensagens contra o jornal.
O teor das manifestações pode ser resumido por alguns trechos que reproduzo: "O que "O Globo" pretende com iniciativas deste tipo? Proteger os criminosos?"; "O Globo" está do lado do povo ou dos bandidos?"; "Fiquei surpreso pelo fato de o jornal proteger, em nome dos direitos humanos, um bandido que está sujando mais ainda o nome do Brasil no exterior"; "Não há mais lugar no Rio para a defesa dos direitos humanos desses bandidos que não pensam quando matam".
Segundo o diretor de Redação do jornal, Rodolfo Fernandes, foram 74 mensagens recebidas em três dias.
A posição do jornal foi expressa, na mesma quarta, em Nota da Redação: ""O Globo" respeita a opinião dos leitores que se sentiram contrariados com as fotos publicadas, mas entende que as polícias modernas do mundo não precisam se valer da tortura para solucionar os crimes. As estatísticas mostram que a violência oficial entra no vácuo da falta de investimento em equipamentos, treinamento e inteligência. O Rio tem condições de sonhar com uma redução da criminalidade sem que o Estado apele para a barbárie".
Com a edição das cartas indignadas, leitores que pensam de forma diferente reagiram, e o jornal editou as cartas, no dia seguinte, em forma de debate. Ouviu também especialistas, que entenderam a primeira onda de reações como uma conseqüência do medo. "Medo da violência leva cariocas a botarem em xeque valores básicos do estado de direito" era a submanchete da reportagem do dia 15.
Acho que "O Globo" cumpriu o seu dever ao publicar as fotos do assaltante e ao questionar o trabalho da polícia. Este é um dos papéis dos jornais, que devem estar sintonizados com seus leitores, mas não podem abdicar de princípios como a defesa da democracia e dos direitos humanos, princípios difíceis de serem sustentadas em períodos de crise e de caos, quando as opiniões se radicalizam.
A situação talvez seja mais grave no Rio, mas a criminalidade, a violência policial e a formação de uma opinião pública desiludida (que não vê solução senão na lei de Talião, na pena de morte e nos esquadrões de extermínio) não são exclusividades da cidade.
Mais do que nunca os jornais devem estar comprometidos em ajudar a sociedade a enfrentar esses fantasmas abrindo suas páginas para a discussão ampla. Mesmo quando essa discussão questiona os seus pontos-de-vista e os espreme contra a parede.


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