São Paulo, domingo, 22 de setembro de 2002

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OMBUDSMAN

Heresia e fé

BERNARDO AJZENBERG

A três semanas do primeiro turno de uma eleição presidencial marcada pela imprevisibilidade, a Folha já adiantou as linhas gerais do balanço que faz da sua cobertura -pelo menos sobre o mais delicado aspecto que ela envolve: a isenção política do noticiário.
Esse é o significado principal do artigo "Árvores abatidas", do editor de Brasil, Fernando de Barros e Silva, publicado domingo passado como réplica às críticas de minha coluna do último dia 8.
Nela eu identificava que, durante toda a primeira semana de setembro, as edições do caderno Eleições constituíram um "ciclo pró-Serra", em detrimento especialmente das candidaturas de Lula e de Ciro Gomes.
Alertava, então, para o risco que esse desvio, caso não fosse interrompido, representava para a credibilidade do jornal.
Na visão de Barros, ao avaliar um número restrito de edições, sem fazer a crítica em perspectiva do conjunto da cobertura, o ombudsman omitia o principal. Via a árvore, mas não a floresta, usando tal "conduta" para "pôr a independência editorial da Folha em questão", para "sustentar uma tese que falseia o sentido geral da cobertura".
Com três exemplos buscados no primeiro semestre, o editor procurava mostrar que o jornal publicara também material com conteúdo anti-Serra.

Abismo
Jornal é um organismo vivo. É produto do momento, não história ou profissão-de-fé. Seja para noticiar um simples fato, seja para coberturas prolongadas.
Em especial no caso dessas últimas -como é a campanha eleitoral-, a existência do ombudsman só faz sentido se ele, apoiado nos leitores e em seu próprio senso crítico, puder apontar anomalias a "quente", antes que estas se transformem em injustiças sem volta.
Barros sabe que a coluna analisava o jornal num momento preciso, sem ser uma "tese", uma apreciação global sobre a sua política de isenção.
Até porque não há como fazer seriamente o balanço do comportamento de um jornal nas eleições antes da edição do dia em que os eleitores vão às urnas.
Ainda mais numa corrida marcada por ondas e reviravoltas, parece presunçoso demais descartar que a reta final possa trazer novas surpresas e, por isso mesmo, novos desafios para o jornal.
Talvez o jornalista se tenha obrigado a puxar a discussão para o campo que ele chama de "floresta" ao não achar no período por mim abordado exemplo de peso favorável à sua avaliação positiva pré-fabricada.
O que escrevi, além disso, nem de longe fechava a possibilidade de que o jornal viesse a cometer o mesmo deslize (parcialidade) em favor de outro candidato.
Seu próprio texto, aliás, cita coluna minha de 26 de maio com alerta semelhante, só que em relação ao PT ("na semana que passou, os marqueteiros do PT puderam respirar aliviados, ao menos quanto à Folha").
Por que daquela vez não existiu réplica sobre árvores e florestas? Talvez porque tenha havido sensibilidade para ver que ali não estava "tese" alguma, mas um "retrato de momento" (expressão que o editor usa depreciativamente) quem sabe útil à reflexão.
Há um abismo entre a intenção de produzir um jornalismo crítico e o fato de efetivamente conseguir realizá-lo. Este requer um esforço árduo, minucioso, de conjunto. Para aplicar os seus princípios, a mesma vigilância tem de ser usada em toda parte, da legenda de uma foto à manchete da Primeira Página. Um simples título enviesado basta para se acender a luz amarela -quanto mais uma sequência de edições.
Por isso, posto que a isenção não resulta de revelação divina, questionar a independência da Folha em certo momento não é heresia. Ao contrário. Faz lembrar que ela tem de ser conquistada e posta à prova a cada dia.

Risco
Em seu texto, Barros insinua que o ombudsman criticou o jornal por "serrismo" apesar de ter calculado o risco de que sua coluna poderia ser usada, como foi, pela campanha petista.
Ora, precisaria o editor ser lembrado de que Paulo Maluf também já usou críticas do ombudsman? De que usos semelhantes -mais ou menos oportunistas- sempre houve, desde que existe ombudsman na Folha? Aqui, ele só viu a árvore.
De novo sobre PT, meu colega afirma: "Espera-se de um jornal como a Folha que deixe um pouco de lado a fantasia publicitária e lance alguma luz sobre as contradições e problemas do discurso e dos governos petistas".
Ótimo. Ainda é tempo, porque, até agora, ela não foi capaz de produzir tal luz, senão em versões bastante pálidas.

Obsessão
Será que a autoconfiança da Folha teria atingido um ponto tal que, para ela, toda ponderação sobre parcialidade só poderia vir de ciristas obtusos ou petistas furibundos disfarçados de leitores? Isso é arrogância.
O jornal conhece o caminho que leva à credibilidade e o quanto é penoso percorrê-lo. Mas dá sinais de que não sabe como é fácil perdê-la.
Até hoje, ao longo dos anos, com mais acertos do que erros, a Folha soube se preservar dessa experiência. Mas isso só aconteceu por se ter valido, quase fanaticamente, de autocríticas imediatas e avaliações severas -justificando por muito tempo, inclusive, a fama criada entre os jornalistas de que trabalhar neste jornal implica ter a pele dura, bastante dura.
Nessa linha de saudável obsessão, não foi outro o sentido da criação da figura do ombudsman pelo jornal treze anos atrás.
Por sorte, com a de hoje, o leitor terá ainda catorze edições até o primeiro turno. Parece pouco, mas, felizmente, não é.


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