São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2001

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OMBUDSMAN

11 de setembro - 2

BERNARDO AJZENBERG

No dia 18 de janeiro de 1991, em plena Guerra do Golfo, uma parte da edição da Folha (80 mil exemplares) circulou com a seguinte manchete: "Sadam lança armas químicas; Israel reage e entra na guerra".
Como se sabe, naquela ocasião, nem Bagdá usou esse tipo de arma nem Tel Aviv entrou diretamente no conflito. Foi um erro de grande porte, corrigido, na mesma noite, na maioria dos exemplares ("Sadam ataca Israel com mísseis; cresce a guerra no Oriente Médio", eis a manchete que prevaleceu).
A origem do "escorregão" esteve em informações truncadas emitidas pela TV (a "grande estréia" da CNN) e em precipitação na edição da capa do jornal.
Até agora, nada comparável aconteceu no noticiário da "nova guerra americana" -esta, a rigor, nem bem começou-, mas toda a atenção será pouca para evitar semelhante estrago.
Como se previa, a complexidade e as múltiplas possibilidades de ações e reações geradas a partir do 11 de setembro começaram a tornar difícil, sujeita a armadilhas, a cobertura da imprensa.
A Folha, que teve ótimo desempenho na primeira semana da "guerra", sofreu inflexão negativa nos últimos dias, em particular a partir da quarta-feira.
A impressão foi que o jornal, ironicamente, parecia mais preparado para cobrir a catástrofe das torres gêmeas e um confronto imediato, tradicional, com rápida retaliação norte-americana, do que para aquilo que de fato aconteceu: intensa e delicada movimentação diplomática, busca de suspeitos, informação e contra-informação, pistas falsas, deslocamentos de tropas militares cujo grau de "encenação" ou despiste ainda não se sabe -ou não se sabia até o fechamento desta coluna- ao certo qual é.
Com efeito, para além do acompanhamento do resgate de corpos e da investigação dos atentados, o grande assunto da semana foi a movimentação geopolítica, a tentativa dos EUA e aliados mais fiéis de costurar apoio concreto à "guerra contra o terrorismo".
E foi nesse terreno que a Folha, nos últimos dias, mais patinou.
Faltaram análises ou artigos que expressassem com clareza e didatismo os impasses da conjunção, em resumo, de fanatismo e globalização, sua expressão concreta na situação criada no eixo Washington-Cabul.
Só na quinta (20), por exemplo, o jornal trouxe um texto de um "peso-pesado" da política internacional, o ex-secretário de Estado Henry Kissinger. Pode-se discordar de suas apreciações, mas é inegável que elas têm valor político e jornalístico.
Uma explicação para essa lacuna pode ser o fato de que a Folha não tem estabelecido uma tradição de acompanhamento sistemático de questões de geopolítica internacional.
Cobre em geral com boa qualidade os conflitos localizados (Oriente Médio, Bálcãs, por exemplo), mas pouco espaço dedica à reflexão e ao noticiário referentes à reacomodação global pós-Guerra Fria e queda do Muro de Berlim.
Pesquisa do Banco de Dados do jornal mostra que apenas em 5 dos 34 finais de semana (edições que concentram as reportagens especiais) de janeiro a agosto deste ano houve material dedicado a isso.
Mesmo no caderno Mais! (caracterizado por editar ensaios e artigos), apenas seis textos tratavam especificamente do tema.
No momento em que surgem acontecimentos da envergadura dos que estamos enfrentando, tal deficiência mostra a cara.

Divergências
Além desta, outra fragilidade apareceu: a dificuldade de mostrar o que acontecia dentro do governo americano, mais precisamente, as divergências relativas ao modo, grau e forma de reação aos atentados. Era natural e esperado, mas o jornal não conseguia trazer nada.
Na edição de sexta, finalmente, a edição nacional da Folha reproduziu um texto do "New York Times" que informava com detalhes as diferenças entre, de um lado, Colin Powell (secretário de Estado) e, de outro, Dick Cheney (vice-presidente).
Sintomaticamente, porém, este importante e revelador texto, em vez de ter sido apenas deslocado para algum outro espaço, foi extirpado da edição SP, para dar lugar à íntegra do discurso feito na noite de quinta-feira por George W. Bush.
Este último, aliás, protagonizou um terceiro problema nas edições da semana: a escolha entre o principal e o secundário.
Bush fez um pronunciamento claro e contundente. Não foram poucos os analistas que viram nele uma virada de comportamento. Como lembrou o jornal "Clarín", foi a primeira vez que um presidente dos EUA se dirigiu ao Congresso depois de um ataque em solo norte-americano desde que Franklin Roosevelt falou aos parlamentares após o ataque de Pearl Harbor (1941).
A Folha, no entanto, preferiu dar a manchete do jornal e do caderno "Guerra na América" para os religiosos ligados ao Taleban ("Afegãos pedem a saída de Bin Laden, sem fixar data").
Lapso semelhante aconteceu na quinta. Em um caderno subitamente "encolhido", com apenas seis páginas, uma delas quase toda foi dedicada a uma pesquisa que mostra o desejo majoritário dos nova-iorquinos de reconstruir as torres.
A "nova guerra" está apenas no início. Ninguém sabe quantos capítulos terá, mas serão muitos.
Os erros da semana passada, aliados à grave falha de 1991 mencionada no início deste texto, devem servir como alerta. Vale repetir o que escrevi aqui na semana passada: o 11 de setembro não veio para facilitar a vida de ninguém.



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