São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2001

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OMBUDSMAN

Aspas e respeito

BERNARDO AJZENBERG

Todo bom repórter domina a técnica de extrair de seus entrevistados frases contundentes, expressivas, inusitadas.
Citações são a alma da boa reportagem. Ensejam uma ponte entre o personagem e o leitor. Humanizam o texto. Conferem-lhe autenticidade.
Como afirma o "Guide to News Writing", espécie de manual da agência "Associated Press", "qualquer que seja o seu tamanho, uma matéria sem citações se torna tão árida como uma paisagem lunar".
Além das declarações, o repórter confere vida aos relatos com detalhes significativos, dados precisos, que particularizem cenários, contextos. Quanto mais êxito obtiver aí, mais completo e atraente estará o texto.
Essas regras, básicas, se tornam ainda mais importantes em textos produzidos em momentos ou locais de tensão, de crise, em situações desfavoráveis.
Deve estar ainda fresca na memória do leitor, por exemplo, a reportagem "O último panelaço", da contracapa do caderno "Colapso da Argentina", publicado pela Folha sexta-feira.
O enviado especial a Buenos Aires conta, ali, como foi a noite que se seguiu à decretação do estado de sítio. Além da contextualização política e histórica, a reportagem continha detalhes da movimentação da "massa" revoltada e... citações.
Por exemplo: "Isto não é de direita nem de esquerda. É contra os sem-vergonhas", disse um "homem sem camisa" diante do Congresso.
A mesma sensação de material jornalístico, vivo, daqueles que nos fazem enxergar no papel impresso o movimento de coisas e pessoas, pôde o leitor experimentar em textos produzidos pelos enviados da Folha ao Paquistão e ao Afeganistão recentemente.
Material daqueles que nos fazem pensar: "Pôxa, esse jornal vale a pena, olha o que ele, e só ele, traz para mim".

Frustração
Semelhante sensação experimentei domingo passado ao ler a reportagem "Medo e frustração esvaziam Jerusalém", creditada ao enviado especial do jornal a Israel/Cisjordânia/Gaza.
Ali havia dados curiosos sobre o dia-a-dia de um hospital, o Bikur Holim, situado na área onde ocorreu a maior parte dos atentados terroristas na cidade.
Prosseguia, ainda, trazendo um "Outro Lado": a comemoração dos últimos momentos do período sagrado do Ramadã. Gostei do texto: pauta original, trazia citações de médicos, transmitia o "clima" local.
Ao abrir a caixa de mensagens de meu computador na Folha, segunda-feira, deparei com uma cujo autor se dizia "chocado" diante do que havia constatado: todas as citações dos médicos daquela reportagem correspondiam, literalmente, a trechos de citações presentes numa reportagem do diário israelense "Haaretz" da sexta anterior.
Fui conferir no site do jornal e confirmei: todas as citações eram copiadas. Seria um caso de plágio? Como leitor, passei do contentamento à frustração.
Em minha crítica interna de segunda-feira, mencionei o problema: "É estranho. Da maneira como está, entende-se que as declarações foram feitas à Folha. Faltou, no mínimo, o crédito. Não seria o caso de um Erramos?". Não recebi nenhuma resposta ou contestação.
Na sexta-feira, saiu um "Erramos": "A reportagem "Medo e..." reproduziu entrevistas concedidas ao jornal israelense "Haaretz" sem ter dado o crédito".
É louvável a admissão do equívoco, pensei. Mas isso resolve o assunto? Do ponto de vista formal e imediato, pode-se dizer que sim. Mas é necessário tirar lições dos erros cometidos, ruminá-los para que procedimentos, por exemplo, desse tipo não voltem a ser aplicados.
Instada pelo ombudsman e pela Secretaria de Redação, a editoria de Mundo afirmou, depois, que o enviado especial relatou ter efetivamente estado na tal clínica de Jerusalém e que "fez entrevistas". Ele disse, ainda, ter lido a matéria do "Haaretz" e que "pode ter cometido o descuido de citar as entrevistas sem mencionar o jornal". Nega, porém, que tenha havido uma "omissão deliberada".
O que espera o leitor de um "grande jornal", além de notícia, serviço e informação correta?
Espera que ele não seja um "recorta-e-cola" (no caso, da internet), como ainda acontece, infelizmente, com vários "noticiários" de rádio, por exemplo. E espera transparência.
O "mundo da notícia" já está pasteurizado demais, igual demais, monopolizado demais por pouquíssimas agências internacionais.
O mínimo que se cobra de seus repórteres que viajam a trabalho é que fujam do roteiro oferecido a todos, que produzam material realmente próprio, original.
Se isso for, por algum motivo, em determinada circunstância, impossível, que se deixe claro para o leitor. Que se atribuam os devidos créditos. Antes de mais nada, é uma questão de respeito.


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