São Paulo, domingo, 24 de março de 2002

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OMBUDSMAN

Canto de sereia

BERNARDO AJZENBERG

"No Brasil, quem vigia as eleições é a mídia. Não precisa de mais ninguém. Basta." A afirmação, feita quarta-feira pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em reação à "ameaça" do senador José Sarney de pedir observadores internacionais para vigiar o pleito de outubro, pode ter sido mero lance de efeito, mas merece reflexão.
Primeiramente, dado o momento em que ocorreu, ela é suspeita e capciosa -ainda mais vinda de alguém pouco chegado ao destempero e ao improviso.
Aparece em meio à onda de notícias acachapantes para a candidatura de Roseana Sarney, parte de amplo e histórico rolo compressor, como já se disse, co-assumido sem pudor pelos veículos de comunicação, com poucas exceções. Ação favorável, claro, ao pré-candidato tucano.
Assim, intencionalmente ou não, com aquelas palavras o presidente dá um afago, uma espécie de retribuição, elogia, fornece à mídia (a mesma que ele já atacou antes, em diversas oportunidades) um voto de confiança, como se lhe propusesse um pacto.
A atuação da imprensa no massacre começou logo após a ação policial na empresa Lunus, alcançou o auge com a exposição ininterrupta das notas de R$ 50 encontradas (em especial pela TV Globo) e, semana passada, voltou sob diferentes formas.
A pesquisa CNI/Ibope, por exemplo, em que Roseana passou de 17% para 13% e José Serra de 19% para 16% das intenções de voto, recebeu do jornal "O Estado de S.Paulo", na sua capa de sexta-feira, o seguinte título: "Roseana cai, rejeição aumenta". Na página interna: "Prestígio de FHC sobe e Roseana cai, revela Ibope". Os dois pré-candidatos caíram, mas os títulos só falavam de uma queda, opção coerente com editorial do mesmo dia ("A diatribe do pai de Roseana") em que Sarney é chamado de "afável oligarca".
"O Globo" foi mais objetivo: "Ibope: Roseana perde 4 pontos e Serra, 3", enquanto na Folha o mesmo levantamento teve o título "Pesquisa aponta queda de tucano" -puxando pelo inverso do que fez o concorrente local.
E aqui cabe comentar a cobertura dada pela Folha ao principal evento político da semana, o discurso de quarta-feira no Senado. Ela foi o mais generoso dos jornais com relação a Sarney, destoando, pelo avesso, do coro oficialista.
Publicou a íntegra do pronunciamento, que ocupou página inteira -regalia só outorgada a documentos considerados preciosos-, e, dentre os principais diários, foi o único a não destacar, na reportagem sobre o evento, a ausência de explicação por parte do senador para a origem do R$ 1,34 milhão na Lunus.
O título acima, ao não registrar que também Roseana caía na pesquisa, combina com a postura relativamente branda em relação ao clã Sarney.

Papel da mídia
Voltando ao início. As afirmações de FHC fazem pensar, também, no papel dos meios de comunicação no processo eleitoral.
Diferentemente do que diz o presidente, quem vigia eleição é a Justiça Eleitoral. Ela, sim, deveria bastar. Se falha ou tem vícios, é outro problema, a ser reportado inclusive pela imprensa.
Ao atribuir tal papel à mídia -e ainda enfatizando que isso "basta"-, dá-se um pontapé perigoso naquela instituição.
O "Manual da Redação" da Folha tem na sua página 28 uma formulação interessante a esse respeito:
"Não cabe ao jornalista praticar funções de policiamento e fiscalização da maneira como são exercidas por órgãos públicos. A investigação dos fatos diz respeito ao compromisso do jornalista com a verdade e a crítica, e não com a promoção de atos de julgamento, que competem à Justiça".
Assim, a retórica enaltação presidencial encobre um canto de sereia. O jornalista que se achar fiscal ou vigia do processo eleitoral estará se auto-enganando. Sem instrumentos nem poderes, muito menos delegação para isso, poderá estar avalizando, involuntariamente, um processo cuja lisura não é capaz de comprovar. Aí se instaura uma armadilha.
A mídia não está acima de tudo e de todos, nem seria desejável que estivesse. Pois isso só se poderia dar em detrimento de outras instituições sociais.
Do jornalista se espera que apure e reporte todo fato, positivo ou negativo, relativo a candidatos, ao Legislativo, ao Executivo, à Justiça ou à própria mídia, que contribua para a reflexão do (e)leitor.
Não se trata de repisar denúncias ou espalhar dossiês a serviço -mesmo sem querer- deste ou daquele lado, mas reportá-los, sim, quando fizerem sentido. Pois a sociedade tem direito à informação, e a imprensa deve ser seu instrumento para exercê-lo.
Em especial aos jornais, cabe, ainda, promover debates de programas e idéias, apontar incoerências, fornecer subsídios históricos, auxiliar o (e)leitor a estabelecer suas próprias escolhas.
Vigiar, assim como favorecer candidaturas, são outros quinhentos.


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