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São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

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OMBUDSMAN

Relatos sem vida

BERNARDO AJZENBERG

Cada meio de comunicação tem suas vantagens e seus limites específicos. Onde um ganha o outro perde -daí, inclusive, o seu alto grau de complementaridade.
Um dos trunfos do jornal impresso está na possibilidade de registrar detalhes que escapam a uma câmera ou a um microfone, depoimentos longos, o "clima" preponderante em determinado evento público, seus bastidores.
Aliada aos inúmeros recursos gráficos de edição e impressão, essa possibilidade, quando bem aproveitada, confere vigor a uma reportagem, torna-a instigante, rica. Faz do jornal algo diferenciado, indispensável.
Recentemente, a Folha forneceu pelo menos três contra-exemplos disso, casos nos quais um tratamento burocrático e relatorial da notícia desidratou suas potencialidades e, em boa parte, redundou em omissão de informações.
No dia 13, um grupo de pessoas fez o primeiro "flash mob" (manifestação organizada via internet) paulistano. A rigor, foi uma brincadeira -durante segundos, elas bateram no asfalto as solas de seus calçados-, mas que chamou a atenção de muita gente na avenida Paulista.
Apesar de ter dado foto na capa, a reportagem da Folha sobre o evento foi mínima e, pior, não trouxe nenhum depoimento dos participantes, suas motivações, que tipo de gente ali estava. O único elemento "vivo" do texto foi a declaração de um fiscal de trânsito perplexo com o evento.
Essa falta de informação e de "tempero" se repetiu na última terça, na reportagem sobre uma manifestação de milhares de camelôs na frente da Câmara Municipal paulistana contra a proibição de montar a chamada "feirinha" na rua 25 de Março.
O "Estado de S.Paulo", por exemplo, registrou que a passeata ocorreu ao som do Hino Nacional, que em vários momentos a direção do movimento pedia ordem e calma; descreveu dizeres de faixas e informou que os camelôs não foram recebidos pelo presidente da Câmara.
O texto da Folha não tinha nada disso. Apenas dava conta de que houve o evento, o local, o motivo, e de que um pedido dos manifestantes foi protocolado.
O fato de o concorrente ter alçado o caso ao alto de uma página, diferentemente da Folha -que não o considerou relevante-, pode explicar parte dessa diferença, mas não a ausência de vida no relato publicado.
Semelhante falta de sensibilidade e de vigor editorial apareceu na forma como foi editada uma notícia, no mínimo, inusitada: a do lavrador de Montes Claros (MG) que, imaginando ser tratado de uma dor de ouvido, submeteu-se, sem saber, a uma vasectomia.
Apesar dos variados recursos de linguagem e de concepção gráfica (um quadro específico, uma ilustração, por exemplo) disponíveis para lidar com uma notícia tão particular, rara e de traços cômicos (provavelmente não para o protagonista, mas isso é uma outra questão), a publicação do curioso acontecimento (na quarta, 20) obedeceu às mesmas características das demais notícias na mesma página ("SP será a 1ª a receber unidade móvel de UTI" ou "Só escola com educação sexual terá camisinha", por exemplo).
A perda em casos como esses nem sempre é visível ou imediata. Ao longo do tempo, porém, o burocratismo e o registro meramente relatorial -que evidenciam certo comodismo editorial e depõem contra a riqueza do jornalismo- acabam por esgarçar a relação entre leitor e jornal: afinal, para que recorrer ao veículo impresso se tudo já foi registrado no rádio, na TV e na internet no dia anterior?


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