São Paulo, domingo, 25 de novembro de 2001

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OMBUDSMAN

Temores

BERNARDO AJZENBERG

A imprensa brasileira passa por um dos momentos mais delicados de sua história.
As verbas de publicidade sofreram desaquecimento, o preço do papel (em dólar) disparou ao longo do ano. Vale para a mídia em geral, rádio, TV, com destaque para jornais e revistas.
Não por acaso se intensificaram nas últimas semanas as pressões dos empresários do setor, dirigidas ao Congresso e ao Planalto, para que seja aprovada o quanto antes a mudança na legislação que permita a participação de capital estrangeiro nessas empresas, algo que o artigo 222 da Constituição impede.
Seria uma forma de sanear cofres -em tese e em parte.
A inédita mobilização política em torno da proposta e a unidade demonstrada pelos donos dos meios de comunicação indicam que, depois de muitos anos na gaveta, ela deverá ir adiante.
Há duas preocupações principais nesse assunto -que deve ir a votação na Câmara nesta semana que entra e no Senado no início de 2002-, e ambas interessam diretamente não só a empresários e jornalistas, mas aos leitores, à sociedade, que, em última instância, é a fiadora da liberdade de imprensa.

Demissões
A primeira é econômica e imediata.
Nos últimos meses, aproximadamente 500 jornalistas foram demitidos das redações em diferentes empresas e pontos do país, com fechamento de sucursais, enxugamento de equipes em sites noticiosos, redução de correspondentes no exterior.
Você, leitor, não ficou sabendo disso, ou soube apenas em parte, porque os jornais têm o péssimo hábito de esconder decisões antipáticas que se vêem às vezes obrigados a tomar, ao mesmo tempo em que expõem, em títulos inequívocos, demissões em outras áreas da economia.
Tal movimento por parte das empresas decorreria de um ajuste derivado da queda de receitas e do aumento de despesas. Ninguém quer jogar dinheiro fora.
Mas também se trata, é fácil imaginar, de uma espécie de preparação, um "saneamento estrutural" realizado com vistas a tornar essas empresas "mais produtivas", atraentes aos investidores estrangeiros que tenderão a buscar parcerias assim que a mudança mencionada na legislação for aprovada.
Arrumem-se as casas, enfim, seria o raciocínio. Caso contrário, nem adianta mexer na Constituição, que o dinheiro externo não virá. Até porque a disputa por esse dinheiro não será pequena.
Se o ajuste nas despesas é feito de forma "burra", como dizem os economistas, as consequências a curto prazo, do ponto de vista da qualidade jornalística, são previsíveis: a escassez de profissionais torna o jornal dependente em excesso de agências internacionais, carente de agenda própria, frágil na incapacidade de apresentar furos.
Sem falar na redução do número de páginas (fenômeno que agride muitos leitores, principalmente, veja o paradoxo, quando ocorre o crescimento do percentual de ocupação de papel por parte de anúncios no conjunto do produto adquirido pelo leitor).
Na cobertura dos atentados de 11 de setembro e da "nova guerra" ficou evidenciado o perigo que essa desqualificação impõe no que diz respeito a manipulação e incertezas na informação e o quanto só uma significativa "liberalidade" no uso de papel possibilita, em certos casos, algum êxito no produto final.
Ainda no terreno econômico, há quem tema que a provável vinda de dinheiro de fora provoque até mais ajustes, mais cortes -mas, por enquanto, se trata de especulação.
A verdade é que, embora não pareça haver outra saída, ninguém sabe muito bem o que significará, em impacto operacional e administrativo, a provável entrada do capital estrangeiro nas empresas brasileiras.
Pode ser bom ou ruim. Ruim a curto prazo, mas bom a médio e longo prazos ou vice-versa.

Dilema existencial
A segunda preocupação -e incógnita- é especificamente de conteúdo editorial.
A experiência das inúmeras fusões ou realocações societárias nas empresas de comunicação em diversos países tem demonstrado que nem sempre há pruridos, por parte dos investidores, em atacar aspectos essenciais do bom jornalismo em nome de interesses "mais amplos".
Independência editorial, contundência crítica, livre investigação -todos esses atributos podem ser sutilmente desestruturados ou questionados.
Além disso, como alertou Clóvis Rossi em coluna na última quarta-feira, o ingresso de dólares ou pesetas não resolverá -ao contrário, pode acentuar- o fenômeno indesejável da concentração da propriedade dos meios de comunicação.
Significa dizer que a situação atual, apesar das dificuldades, seria preferível à nova que se aguarda? Certamente, não.
O leitor perdoe o tom talvez um tanto lúgubre desse texto, mas o fato é que há uma espécie de impasse na condução do jornalismo como empresa, aqui e no exterior. Um dilema existencial simples e antigo: se ficar o bicho come, se correr...
É importante que jornais compartilhem com leitores essas dúvidas. Eles precisam saber delas, pois se trata de desafios que o seu direito à informação terá de vencer para continuar vivo.



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