São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

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OMBUDSMAN

Rápido no gatilho

BERNARDO AJZENBERG

Na quarta-feira, a Folha publicou a seguinte manchete na Primeira Página: "Real fecha abaixo do peso argentino".
A alta do dólar, no dia anterior, batera novo recorde, com a moeda americana valendo R$ 3,78. No mesmo dia, em Buenos Aires, cada dólar valia 3,70 pesos -daí a formulação do título.
Aparentemente, este apenas registrava o cruzamento de dois dados objetivos. Na página seguinte, porém, o editorial "Turbulência" advertia:
"O fato de que ontem o valor do real, medido em dólares, se tornou inferior ao do peso argentino pode dar a falsa impressão de que a economia brasileira está mais debilitada que a argentina. Mas basta uma comparação para desfazer esse equívoco: em 2002 a alta do dólar sobre o real é de 63%; nesse mesmo período, a moeda americana... se valorizou 270% sobre a argentina".
O enunciado da manchete também se fragilizava à luz de uma reportagem em Dinheiro, segundo a qual "o que tem que ser considerado é o valor real da moeda. Ou seja, seu poder de compra".
Ela terminava assim:
"Para afirmar que uma moeda vale menos que outra, os economistas comparam diversos produtos e taxas de câmbio de períodos mais longos".
Em outras palavras, apesar de apenas constatar uma relação numérica abstrata, a manchete comparava coisas na realidade incomparáveis, como banana com maçã. E induzia o leitor a achar que a economia brasileira chegou a uma situação ainda pior do que a da Argentina.
Para complicar, o texto da chamada, sob a manchete, nada dizia a esse respeito, não se preocupava em relativizar a "licença jornalística" do título.
Tudo isso seria menos grave, claro, se não se tratasse de uma manchete do jornal de maior circulação no país. No atual momento, delicado economicamente, à véspera de uma eleição presidencial -e com a "fama" nada edificante da situação do país vizinho-, haja alarmismo.
Irritado com o jornal por causa disso, um leitor que é operador no mercado de capitais me disse ao telefone que, sendo "tão elementar" o equívoco a que a manchete induz, ele não conseguia acreditar que ela fosse fruto de "acidente ou barbeiragem".
Para ele, com esse título "terrorista" em relação à situação do Brasil, a Folha contribuía para fragilizar o governo (que seria o maior responsável pelo "caos") e, por tabela, favorecer a candidatura de Lula (PT) ao Planalto.
Quando ponderei que, dentro, editorial e reportagem de certo modo atenuavam o alarmismo, o leitor foi rápido no gatilho:
"E daí? É como você me acertar um tiro e depois pedir desculpas. Nem você deixou de me alvejar nem eu deixei de ficar ferido".


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