São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 2002

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OMBUDSMAN

O dado e a informação

BERNARDO AJZENBERG

A manchete da Folha na última segunda-feira foi: "Doações às campanhas sobem 110% em 4 anos". A reportagem, na página interna, trazia como título: "Doação para campanha do PT cresce 673%".
No conjunto, dizia o texto, todas as campanhas políticas reuniram neste ano, ao menos oficialmente, R$ 580 milhões, ante R$ 276 milhões em 1998 -daí os 110% da manchete.
Só o PSDB, por exemplo, arrecadou R$ 105,8 milhões em 1998 e R$ 147,8 milhões agora -quer dizer, uma subida de 40%.
São números fortes, expressivos, mas cabe refletir sobre seu significado e sobre o tratamento jornalístico dedicado a eles.
Ocorre que todas essas porcentagens e esses aumentos não levam em conta a inflação acumulada ao longo dos últimos quatro anos. São, portanto, aumentos que os economistas chamam de nominais, e não reais.
O texto da reportagem deixa isso claro. O que vale a pena questionar, aqui, é, exatamente, por que o jornal, em vez de apresentar esses dados apenas da forma direta e crua como fez, não incluiu em seu raciocínio cálculos que levassem em conta também aquela inflação.
Isso permitiria à reportagem incorporar outros ângulos -relevantes e até surpreendentes- à sua apuração jornalística original e oferecer ao leitor, além de uma dimensão mais exata do significado dos números, a possibilidade de uma interpretação e de uma reflexão mais amplas.

Exemplos
Descontando-se naqueles números a inflação do período (76%, segundo a reportagem), poder-se-ia constatar, por exemplo, que o aumento nominal de 110% do conjunto das campanhas representa, a rigor, uma subida real de apenas 19% -o que não deixa de indicar possível reflexo da situação econômica restritiva que o país atravessa.
Que os 40% de aumento nominal das doações ao PSDB significam, na verdade, uma redução real de 20,6% -algo que poderia expressar, no cofre da campanha, certo ceticismo quanto às possibilidades de vitória da candidatura governista. Essa interpretação, aliás, poderia ser aplicada também ao PMDB e ao PFL, que formaram durante a maior parte da "era FHC" a sua base de apoio.
Mais: que a única das "grandes" legendas a ter obtido aumento real foi a do PT (embora sua arrecadação tenha crescido, em termos reais, 339%, ante os 673% nominais) -o que quer dizer, em síntese, que os doadores fizeram, ao menos durante a corrida, uma "aposta certa".
Veja no quadro acima uma tabela que montei comparando os aumentos reais e os nominais no caso dos principais partidos e do total das campanhas.

Essencial
A Sucursal de Brasília, responsável pela reportagem, argumenta que "custo de campanha política não é um preço comum da economia e está longe de seguir uma indexação, ainda que informal".
"A valer o argumento do ombudsman", avalia a Sucursal, "um anúncio do reajuste do preço dos combustíveis também deveria vir descontando a inflação. O que vale para o consumidor é o aumento nominal, que pesa no bolso".
Concordo com o primeiro ponto. Mesmo assim, sem querer igualar doação de campanha a combustível, levo em conta, em meu raciocínio, que a inflação, sendo um elemento essencial da vida econômica, atua decisivamente tanto no caixa dos eventuais doadores como nos custos de uma campanha política.
Talvez o impacto do título e da manchete diminuísse com a aplicação do sugerido nesta coluna (19% de aumento, afinal, impressionam bem menos do que 110% de aumento).
Mas exibir ao leitor a diferença entre aumento real e aumento nominal, numa reportagem como essa, seria propiciar-lhe um jornalismo mais elaborado.
Seria levar em conta, na prática, a idéia de que existe uma importante diferença entre, de um lado, o dado "puro" (das estatísticas, dos computadores) e, do outro, a informação (dado enriquecido, após sua apuração, pelo trabalho crítico do jornalista).



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