São Paulo, domingo, 30 de março de 2008

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O fim da picada


No auge da crise da dengue na cidade do Rio de Janeiro, a Folha pareceu adormecida; volta e meia isso acontece -menos mal que acordou

NA TERÇA retrasada, a cidade do Rio somava mais de mil casos diários de dengue, com a marca de 28 óbitos no ano. No Estado, eram ao menos 33. Enquanto cientistas e governantes batiam boca em torno do reconhecimento da epidemia, milhares de pessoas padeciam nas filas dos hospitais.
No dia seguinte, a Folha não publicou nem uma linha noticiosa a respeito. Nenhuma palavra, letra de rodapé. "É o que se chama de insensibilidade jornalística", comentei.
Semanas antes, o jornal enfileirara uma seqüência de menções na primeira página sobre mortes por febre amarela. O mal não é transmitido em áreas urbanas desde a década de 1940. Em 2008, no campo, matou menos que a dengue só no Rio capital.
Na quinta, o segundo título mais importante da capa: "Dengue no Rio é culpa do prefeito, diz ministro". Na sexta, outra chamada: "Dengue é epidemia no Rio, admite secretário". No sábado, uma semana atrás, a manchete: "Exército montará hospital no Rio contra a dengue".
Três dias em que as informações mais destacadas foram declarações de autoridades (uma do ministro da Defesa). O jornal se manteve distante de prontos-socorros. Nada de testemunho ocular da dor dos enfermos. Ou de investigar o montante e a qualidade dos investimentos públicos na prevenção ao mosquito e no combate à doença. Escrevi: "[É] a história oficial".
Na segunda passada, em nova evidência de ciclotimia, o jornal não imprimiu sílaba de notícia acerca da dengue. Nem que fosse sobre a hipótese de o surto atingir São Paulo. Na crítica diária, protestei.
A partir da terça-feira, assistiu-se a uma notável virada da Folha, a despeito de deficiências. Mérito: repórteres foram à rua contar o caos. Demérito: o maior jornal do país apurou sem fotógrafo sua reportagem principal, "Rio demora 3 h para atender casos de dengue". Leu-se sobre a covardia contra os doentes em um relato sem imagens.
No mesmo dia, veiculou-se estatística que sugere ausência de mocinhos na gestão da saúde: nesta década, o recorde de casos de dengue no Brasil ocorreu em 2002, governo Fernando Henrique Cardoso; o de mortes, em 2007, sob Luiz Inácio Lula da Silva.
Na quarta, um furo da Folha quebrou o paradigma que orientava as coberturas jornalísticas, que fiscalizavam exclusivamente os governos municipal e federal, mas poupavam o do Estado. "Rio [a rigor, RJ, o Estado] cortou verbas para combate à dengue".
No auge da crise, a Folha pareceu adormecida -o fim da picada. Volta e meia isso acontece, possível conseqüência de acomodação com a liderança de mercado. Menos mal que acordou. Anteontem, a conta oficial de mortos no RJ batia em 54, metade crianças.


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