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Adivinhe quem vem para jantar
A Folha predica anonimato, mas não pratica. No dia 19 de abril, estampou duas fotos do seu crítico; o jornal não se importa em expor o profissional
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CRÍTICA DE GASTRONOMIA do "New York Times" na década de 1990,
Ruth Reichl era tão obsessiva
com a manutenção do seu
anonimato que criou seis disfarces. Arriscou-se no restaurante Le Cirque na pele de um
de seus personagens e, certa
feita, com a cara limpa.
O atendimento para a jornalista foi mais generoso que para a desconhecida. Capricharam no serviço e vitaminaram
as porções. "As framboesas
das novas tortas tinham três
vezes o tamanho das anteriores", lembrou no livro "Alho e
Safiras - A Vida Secreta de
Uma Crítica de Gastronomia
Disfarçada" (Objetiva).
Ela ensinou: "Um dos requisitos básicos para um bom crítico de gastronomia é a habilidade de ser anônimo". Evitava
a convivência que poderia afetar suas avaliações: "Não vou a
festas com chefs", dizia.
Reichl não estava só. É diretriz da Associação dos Jornalistas de Comida, nos Estados
Unidos: "As críticas devem ser
feitas anonimamente sempre
que possível. [...] Críticos que
tiverem sido reconhecidos
precisam informar na crítica".
Em uma década no jornal
americano "Philadelphia Inquirer", Craig LaBan se manteve incógnito. O segredo sobre quem está por trás do pseudônimo ficou ameaçado
depois que em fevereiro saiu
seu relato sobre um steak de
R$ 28 que LaBan só faltou
comparar a sola de sapato.
O estabelecimento o processou, alegando que o corte
da carne não era o citado. Talvez a Justiça o obrigue a aparecer e perder o que os advogados chamam de segredo comercial.
Muitas casas de pasto nova-iorquinas mantêm dossiês para descobrir críticos em seus
domínios, como contou a
agência Associated Press em
abril. Reúnem fotografias,
descrição física, gostos e antipatias culinárias. Um jornalista tem dentes ruins. A mulher
de outro prefere batom de cor
manjada.
Quando Frank Bruni chegou a um restaurante, foi percebido. Tinham fotos suas, antídotos contra surpresas. Desde 2004 ele ocupa no "Times"
a função que foi de Reichl. Embora suas feições não sejam ignoradas, pois ele foi repórter e
é autor de livros, no seu blog
não há retrato seu atual ou antigo, para dificultar "flagras".
O gato-e-rato entre "restaurateurs" e críticos tem motivo
evidente: quanto mais o comensal aprecia comida e serviço, melhor a cotação. Boas
cotações resultam em maior
movimento e caixa fornido.
Para o restaurante, está em
jogo dinheiro. Para os jornalistas, a recusa a um produto artificial, que não é o mesmo oferecido à média dos fregueses.
Questões éticas
Esses procedimentos do
jornalismo de qualidade não
passaram despercebidos à Folha. O "Novo Manual da Redação" afirmava em 1992: "O
anonimato é importante, por
exemplo, para testar serviços
públicos ou particulares, como restaurantes".
A versão de 2001 do "Manual" recomendou no verbete
"ética": "Ao testar os serviços
de um restaurante, por exemplo, é conveniente que o repórter permaneça no anonimato e pague a conta. De outro modo, sua avaliação poderia
ficar comprometida por um
atendimento especial ao qual
seu leitor não teria acesso".
No último dia 11, a regra foi
emendada, e bancar a despesa
tornou-se obrigação. Outro
acréscimo: "Serão vedadas
participações em eventos
quando houver real ou aparente conflito de interesses".
A Folha predica anonimato,
mas não pratica. No dia 19 de
abril, estampou duas fotos do
seu crítico, Josimar Melo. Não
surpreendeu. Em 5 de dezembro de 2004, publicara outras
duas. Na internet, a agência
noticiosa Folhapress veicula
uma. O jornal não se importa
em expor o profissional.
Nem ele, como se constata
no seu blog, com foto no alto, e
no seu site, que anteontem
abria com uma imagem sua.
Há mais problemas. Melo,
que se intitula "agitador cultural" da gastronomia, foi promotor de eventos comerciais
na área quando já era crítico.
Criou o Boa Mesa, do qual se
afastou, e o Mais.Paladar, que
ocorreu em 2003.
Como empreendedor, convocou chefs para dar aulas, remunerando-os. Depois, como
crítico, se pronunciou sobre
eles na Folha. Um rapaz que
trabalhou na administração
do Mais.Paladar depois teve
um restaurante novo seu visitado. A resenha apontou aspectos positivos e negativos e
o classificou como "bom".
Não é protocolar o registro:
inexiste a mais remota indicação de uso do jornal em benefício próprio. Não se trata disso, mas de "real ou aparente conflito de interesses" -entre
quem julga os cozinheiros e
quem já os contratou.
É justa a reputação de Josimar Melo como um dos mais
qualificados jornalistas gastronômicos do país. Ao diletantismo e à troca de favores
que vigoraram por tanto tempo (e estão longe da erradicação), ele contrapôs rigor e conhecimento. Entende de comida, escreve saborosamente.
Para o leitor, contudo, é
ruim que a chance de o crítico
da Folha, distante do anonimato, receber um filé frio seja
muito menor que a do consumidor comum. O padrão do
jornalismo de serviços deve
ser igual ao de outros falsamente mais nobres -como
bem formula o "Manual".
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Mário Magalhães é o ombudsman da Folha desde 5 de abril de 2007. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Não pode ser demitido durante o exercício da função e tem estabilidade por seis meses após deixá-la. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores, recebendo e verificando suas reclamações, e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
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