São Paulo, domingo, 31 de março de 2002

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OMBUDSMAN

Passeio no ar

BERNARDO AJZENBERG

O programa "Roda Viva", da Rede Cultura, é um raro momento na TV que possibilita razoável aprofundamento de discussões de interesse público.
Na berlinda fica o entrevistado, mas também se expõe à apreciação do telespectador o desempenho dos entrevistadores.
"O programa não é feito pela Cultura, mas pelos jornalistas", diz Marco Antonio Coelho Filho, diretor de jornalismo da emissora, referindo-se aos representantes dos veículos que vão à arena.
Nas últimas edições, o programa recebeu quatro pré-candidatos ao Planalto, e o que se viu foi uma imprensa menos preparada do que a maioria dos políticos para enfrentar as eleições.
Não se trata de avaliar os perguntadores individualmente. Eles integram o primeiro time da categoria, têm currículos de primeira linha. Interessa, sim, captar a performance do conjunto, expressão de uma situação perigosa vivida pelo jornalismo.
José Serra abriu a série, dia 4. Houve 67 perguntas, sendo as primeiras sobre os assuntos quentes na ocasião: verticalização das coligações e operação da PF na empresa Lunus. A partir dali, viu-se um encontro morno, atravessado pelo tucano como num passeio.
Nenhuma pergunta surpreendeu o telespectador -muito menos o senador-, seja pelo tema, seja pela forma de elaboração.
A maioria se baseava em pressupostos genéricos, sem rigor técnico que pudesse "encostar na parede" o entrevistado (assim foi sobre a dengue ou o uso da máquina federal na campanha, por exemplo). Poucas foram as contestações ao pré-candidato.
O clima de luva de pelica virou pelo avesso na semana seguinte, vez de Anthony Garotinho (PSB), trucidado, com alguns entrevistadores chegando próximo do limite em agressão verbal. Foi interpelado 97 vezes, entre perguntas e acusações, com ênfase, no início, para a viabilidade de sua candidatura e o "dossiê" que ele disse ter visto a respeito de Roseana Sarney.
Só a partir da trigésima pergunta (sobre a decisão dos EUA de sobretaxar o aço), o governador conseguiu falar mais do que quatro frases em seguida.
Com Ciro Gomes, dia 18, e Luiz Inácio Lula da Silva, segunda passada, o clima de camaradagem voltou, refletido no baixo número de perguntas (quanto menor, mais tempo fala o entrevistado): Ciro, 45; Lula, 46.
Também foi um passeio o que Ciro fez no "Roda Viva", com apenas uma diferença, positiva: houve algumas questões mais preparadas, baseadas em trechos ignorados do seu programa, por exemplo sobre tributação.
O petista veio com discurso afiado para o tema óbvio das invasões de terra pelo MST, aliança com o PL, sua falta de experiência administrativa.
O único questionamento enfático, logo abortado, referiu-se à atuação do BNDES na recapitalização da empresa Globo Cabo.

Paradoxo
Há um paradoxo por trás da inaptidão que marcou essa série de entrevistas: ao mesmo tempo em que as mudanças políticas e econômicas dos últimos anos (da Queda do Muro de Berlim aos atentados de 11 de setembro, passando pelo avanço da globalização) impuseram a necessidade de um jornalismo mais técnico, qualificado e refinado -em oposição ao relativo maniqueísmo anterior, quando era fácil detectar o mal e o bem, esquerda e direita-, jamais as redações enfrentaram tanta dificuldade econômica, tanta restrição; e algumas nunca tiveram número tão pequeno de jornalistas.
Nessas dimensões estruturais, como exigir que seus profissionais não sejam meros "fechadores de jornal" aturdidos pela pressão industrial e possam também compor "núcleos de pensamento", questionar dados oficiais, investigar programas políticos ou descobrir teses acadêmicas úteis ao seu ofício?
Parece natural, em tal penúria, que, apesar do talento individual, seus representantes cheguem desarmados ao "Roda Viva", por exemplo, portando no máximo questões genéricas e "pegadinhas" previsíveis.
Candidatos vão à guerra, com "dossiês" e marketing, enquanto a imprensa corre o risco de ficar como cego em tiroteio.



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