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William Stoddart e Mateus Soares de Azevedo

TENDÊNCIAS/DEBATES

Deixem que os muçulmanos cuidem de si

A estratégia ocidental de impor a democracia a qualquer preço tem criado caos social, dá poder a uma ala mais intolerante do islã e prejudica até mesmo Israel

A tragédia no estádio de futebol de Port Said, no norte do Egito -país cuja população alcança expressivos 81 milhões de habitantes, algo que faz dele uma das cinco maiores nações muçulmanas no mundo-, aliada às suas conotações e implicações políticas e às suas possíveis consequências futuras, obriga-nos a colocar a seguinte questão.

O que está acontecendo atualmente no mundo islâmico e árabe é de fato uma "primavera" ou é antes um pesadelo?

Outra pergunta, relacionada a essa: o que a população do Iraque (30 milhões de habitantes) ganhou depois de nove anos de "regime change" dos neocons americanos e de "imposição" da democracia?

A resposta não é complicada: um país profundamente dividido, com um guerra civil e sectária que tem feito milhares e milhares de vítimas, na maior parte civis muçulmanos.

No Iraque, a "exportação" forçada da democracia levou ao domínio da maioria xiita (que é minoritária no islã global) e à opressão da minoria sunita (majoritária no mundo islâmico).

Esse é o legado deixado pela ocupação norte-americana. Ela, mesmo do ponto de vista dos interesses maiores dos EUA, era a rigor desnecessária, pois os Estados Unidos não tinham nenhuma razão de força maior para ocupar o Iraque. O país se rendeu, de forma inconsequente, às pressões de Israel e de seus partidários internos.

Mas, se a ocupação do Iraque favoreceu os desígnios estratégicos israelenses, a turbulência e incerteza em países como Egito, Síria e Líbia, entre outros, parece até aqui ter sido bastante desfavorável para esses mesmos desígnios.

Se, no tempo de Mubarak, o Egito era favorável a eles, mesmo contra a opinião majoritária da "rua árabe", hoje isto não vale mais.

Israel já perdeu a Turquia, que é um dos mais fortes países islâmicos, e agora está perdendo o Egito, ambos crucialmente estratégicos para os seus interesses.

Seja como for, a estratégia da "democracia a qualquer preço" tem paradoxalmente premiado em especial os defensores de um islã limitado e truncado, eventualmente violento. O islã integral, que é simultaneamente tradicional e espiritual, padece nas mãos desses seus intolerantes e supostos "defensores" fundamentalistas.

No Egito, essa ideologia contribuiu para intensificar o caos social e econômico, e no final fortaleceu fundamentalistas militantes. Por exemplo: a Irmandade Muçulmana, minando a influência do islã tradicional, que é pacífico e tolerante.

Já temos suficientes problemas no Ocidente, permitamos aos muçulmanos autênticos a tarefa de cuidar de si mesmos.

O islã tem uma civilização de 1.400 anos de realizações impressionantes em intelectualidade, em espiritualidade, em cultura, em arte, em ciências e em organização social e política.

O islã tradicional é uma civilização viva que tem moldado o pensamento e a vida de mais de um bilhão de pessoas espalhadas pelos cinco continentes.

As suas escolas de espiritualidade ("sufismo"), de jurisprudência ("fiqh"), de teologia ("kalam") e de filosofia ("falsafah") provêm a base sobre a qual agir em conformidade com princípios estáveis e duradouros. Algo imposto do exterior, por meio de força militar e econômica, mais e mais assume as cores de um totalitarismo disfarçado.

WILLIAM STODDART, 86, escritor britânico, é autor de "What Does Islam Mean in Today's World?" (World Wisdom Books, EUA, 2012) e "O Budismo ao seu Alcance" (Record, 2004)
MATEUS SOARES DE AZEVEDO, 53, mestre em história das religiões pela USP, é autor de "Homens de um Livro Só: o Fundamentalismo no Islã, no Cristianismo e no Pensamento Moderno" (Best Seller, 2008)

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