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Roberto Soares Garcia

TENDÊNCIAS/DEBATES

Ladrão que delata ladrão não merece perdão

Delação é traição, é imoral. Na URSS stalinista, até crianças que deduravam seus pais eram premiadas. No Brasil, o novo Código Penal quer banalizá-la

Durante o depoimento de Carlinhos Cachoeira à CPMI, ouviram-se diversos apelos para que ele delatasse os pretensos comparsas de esquema em troca de alguma benesse, tudo com o fito de desbaratar uma pretensa quadrilha que sangra os cofres públicos.

Trata-se da conhecida delação premiada, cuja implementação ampla como instrumento de política criminal volta a ser discutida pela apresentação do projeto de reforma do Código Penal. Seria possível a diminuição ou a isenção de pena ao delator partícipe de quaisquer crimes. Hoje, o instrumento é reservado a poucas hipóteses legais.

Em português direto: se vingar a proposta, teremos uma legislação penal maquiavélica.

A Constituição estrutura o estado e define o regime de liberdades dos cidadãos. Os códigos Penal e de Processo definem as hipóteses em que o Estado pode agir contra a liberdade do indivíduo e quais são os trâmites a serem seguidos.

Os três são os diplomas mais importantes para o desenho de uma sociedade livre e solidária, que é promovida pela irradiação dos valores neles expressos. Incluir no Código Penal um instrumento de alma maculada é disseminar um desvalor.

Ter o prêmio à delação como instrumento de política criminal significará introduzir no sistema jurídico vetor desagregador, cuja natureza antiética não se modifica pela circunstância de ter sido praticada em desfavor de quem é criminoso. Em uma sociedade que se pretende democrática, ladrão que delata ladrão não merece cem anos de perdão.

Delação é necessariamente traição, indicadora de amoralidade incompatível com as normas que mantém a sociedade agregada. O desprestígio da confiança como valor social mina os fundamentos da vida civilizada.

Em vez de dar voltas teóricas para mostrar como é inadequada a delação, basta exemplificar: ela foi instrumento disseminado de política criminal na União Soviética stalinista.

O menino Pavlik Morozov foi premiado pelo estado totalitário por promover a delação de seu pai. Ganhou do regime uma estátua em troca da ajuda. Seu pai morreu num gulag. É desnecessário descrever aqui o grau de desconstrução atingido pela sociedade soviética após anos de vigência de tal modelo totalitário de justiça criminal.

No que diz ao mérito, a premiação da delação não costuma produzir virtude, como vespa não fabrica mel. Um dos delatores mais famosos da história recebeu trinta moedas de prata em troca de seu depoimento. Seu nome era Judas, e a história terrena do delatado terminou em crucificação, acusado de subversão.

Premiar a delação significa agasalhar criminoso que, traindo seus comparsas, foi útil ao colaborar para as investigações que deveriam ser realizadas eficazmente pelo Estado. É a falência confessada do sistema.

Protege-se criminoso que se aproveita das falhas estruturais dos órgão de apuração penal para obter impunidade completa ou parcial. Fosse o Estado eficiente, não haveria porque redimir o dedo-duro.

Mas, como é falho, em vez de aperfeiçoar os meios de investigação, conta com a traição de criminoso. São os fins justificando os meios. Será, como se disse, o direito penal inspirado em Maquiavel.

ROBERTO SOARES GARCIA, 41, é advogado criminal e professor de pós-graduação da Escola de Direito de São Paulo da FGV

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