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Arthur Kaufman

O ASSUNTO DE HOJE: LAZERES URBANOS

O hábito de ser maltratado

Os desafios para ver uma peça: trânsito, estacionamento a R$ 28, filas. Mas ficamos passivos, olhando para o vazio ou para o celular, sem chiar, feito gado

Sexta-feira à noite, programa familiar. Compramos ingressos com bastante antecedência para assistir à peça "Um Violinista no Telhado", com uma primorosa atuação de José Mayer e de um grande elenco, que trata da saga de judeus expulsos de uma pequena cidade russa em 1905.

Expulsos por quê? "Porque sim, vocês estão sendo expulsos de todas as aldeias!" "Mas nós nascemos aqui, crescemos aqui, por que não podemos ficar?" "Porque não. E vocês têm três dias para venderem todas as suas posses e irem embora."

"E se não formos?", pergunta um morador inconformado. "Bem, teremos de chamar nosso Exército! Vocês querem que isso aconteça?"

E eles realmente saem: as famílias se rompem, as pessoas se despedem para sempre... Enregelados pela neve, todos vão embora, cada um levando pedaços da família, cada um levando a sua pobreza nas velhas valises sobre as lentas carroças.

Foi num episódio assim que meu pai veio parar no Brasil.

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Para curtir a peça, tivemos de sair cedo: o teatro Alfa fica muito longe do nosso mundinho, o trânsito das 19h30 estava bravo e precisávamos chegar antes das 21 horas, para tentar evitar congestionamento na hora de entregar o carro ao serviço de valets da Estapar.

Se não deixar com eles, você será extorquido por um flanelinha ou pelo Detran -isso se não for assaltado, é claro, neste nosso país campeão mundial de blindagem de carros.

A primeira surpresa é o preço: R$ 28,00 para o período. Quem manda querer consumir cultura?

Perguntei à funcionária se podia deixar antecipadamente pago. Resposta: "Não, o sistema não aceita. Se pagar agora, tem de tirar o carro agora." "Mas o preço é o mesmo! Além disso, não vai encher de gente na hora de tirar?" "Não, não vai."

Se o valor do estacionamento é esse, imagine o preço do show! É difícil fazer um programinha noturno em São Paulo sem pagar uma conta na casa dos três dígitos. Até Andre Rieu, uma espécie de McDonald's da música clássica que em Maastricht toca no meio da praça, aqui custa uma nota -isso para ver seu violino e sua cara de "eu sou o máximo" no ginásio do Ibirapuera.

Entramos, curtimos a peça. No final, fizemos algo que não gostamos: por medo do congestionamento na fila do estacionamento, abandonamos a sala logo no começo dos aplausos ao elenco -exatamente na hora em que a plateia demonstra a sua satisfação e, de forma afetiva, "retribui" o trabalho dos artistas.

Quando fomos pagar, a fila já equivalia a quase dez minutos de espera. Em pouco tempo, centenas de pessoas já esperavam com o ticket na mão. Enquanto aguardava o meu carro, olhava para as pessoas: parecia gado esperando. Alguns olhavam passivamente para o vazio, outros mexiam freneticamente em seus celulares, a droga do século 21.

Fiquei na expectativa de que alguém chiasse. Ninguém chiou.

É como se todo mundo já estivesse acostumado a pagar caro, ser maltratado e não protestar.

São as mesmas pessoas que, se acham que aqui tudo é caro, têm como solução ir ao exterior fazer compras. A mentalidade de colonizado não muda, e não adianta assistir shows importados da Broadway.

E nem é necessário chamar o Exército para colocar ordem na terra de ninguém -no caso, o estacionamento de um dos teatros mais luxuosos e caros da cidade.

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