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Luís Colombini

TENDÊNCIAS/DEBATES

Um senhor compra vinho no mercado

Para alívio e segurança geral, agora mercados, forçados a me pedir RG e cadastrar, já podem provar que, com rugas e cabelos brancos, eu não sou adolescente

Faz mais de 70 anos que é proibido vender bebida alcoólica a menores de 18 anos em São Paulo.

Estudos sustentam que, se 20 anos atrás os jovens tomavam seu primeiro trago aos 17 anos, hoje a iniciação etílica se dá aos 13, o que configura um problema de saúde pública que exige ação imediata.

Nada mais lógico, portanto, do que reforçar a fiscalização. Mas isso pressuporia um grau de bom senso a que o governo não está habituado. Por isso, em vez do óbvio, justo e estabelecido, foi criada nova lei para fazer a mesma coisa que a anterior, só que tomando o cuidado de acrescentar alguns despropósitos a ela.

Agora, para evitar que adolescentes comprem vinho no mercado, todos que adquirem bebida alcoólica são obrigados a apresentar ao caixa documento com foto que comprove a data de nascimento.

Tenho 47 anos, dezenas de rugas e milhares de cabelos brancos. Infelizmente, não há a menor probabilidade de que até uma toupeira desconfie que tenho menos de 18. Mas o caixa não permite que eu leve para casa uma cerveja se não mostrar o RG. Quer ver minha foto para ver se eu sou eu mesmo.

Tirado aos 17 anos, meu retrato no RG só comprova o quanto, 30 anos depois, me tornei irreconhecível em relação ao rapaz da fotografia. Ao vivo, sou uma prova de maioridade muito mais sólida do que qualquer papel. Documento pode ser falsificado. A decadência física oriunda da idade, infelizmente não.

Como não se dispõe a fiscalizar, o governo tenta empurrar o problema para o varejo. A mesma lei 14.592, de 19 de outubro de 2011, que obriga idosos a provarem que não são menores de idade exige que mercados gerem cadastros para comprovar aos fiscais a idade dos clientes que consomem bebidas alcoólicas.

Não precisa ser gênio: no sistema de todo e qualquer mercado, não constará nenhum menor. Ali, todos terão mais de 18, pois empresário algum será estúpido a ponto de deixar registrada a venda ilegal. Com isso, impulsiona-se a criação de mais uma profissão informal: a do desocupado que, munido do RG que comprova sua maioridade, faz ponto na porta de lojas para, em troca de uma graninha, comprar goró para o menor.

A obrigatoriedade do RG, porém, é só mais um caso de falta de bom senso legislativo.

Há 20 anos, por exemplo, só havia sacos de papel nos mercados. Sob a alegação de que eram predadores de árvores, foram substituídos pelos redentores saquinhos de plástico. No começo do ano, porém, o plástico virou o novo grande assassino da natureza e, assim, foi banido dos supermercados.

Os consumidores adquiriram então sacolas reaproveitáveis -as mesmas que devem ser esquecidas agora. No final do mês de julho, a Justiça determinou que os mercados sejam multados caso não cedam os mesmos saquinhos plásticos de décadas. Não parece piada?

Outro caso: há pouco, o governo constatou que assaltos praticados por motociclistas aumentaram em São Paulo. Incapaz de garantir a segurança da população, tentou inventar uma lei que proibia motociclistas de levar a namorada na garupa.

É a lógica de sempre na fábrica de disparates, segundo a qual é mais prático proibir piquenique do que exterminar formigas. Enquanto a falta de bom senso prevalece, os malvados sacos de plásticos se tornam obrigatórios de novo, os assaltos com motos avançam nas estatísticas e jovens se embebedam cada vez mais.

Mas, pelo menos, para segurança e alívio de todos, os mercados podem comprovar aos fiscais que eu e os aposentados não somos menores de idade.

LUÍS COLOMBINI, 47, é jornalista e escritor, autor de "Abacaeacó" (editora Caramelo) e "Aprendi com meu pai" (Saraiva)

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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