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Melchiades Filho

Medo da morte

BRASÍLIA - Vinte anos atrás, "matamos" Caetano Veloso e Gilberto Gil várias vezes. Eu trabalhava na equipe que desenhava e escrevia a primeira página da Folha. Um de nossos passatempos era imaginar notícias -e o destaque que receberiam na principal vitrine do jornal.

O desaparecimento de personalidades fazia parte daquele exercício de hierarquização: qual ganharia menção na capa, qual ficaria "acima da dobra" e qual, desbancando os demais assuntos, viraria manchete.

Em alguns casos, o debate esquentava. Mas, até onde me lembro, havia consenso de que tanto Caetano como Gil emplacariam a manchete.

Não sou crítico de música. Nunca fui tiete dos tropicalistas. Cresci com Baby e Pepeu. Mas o show de Caetano e Gil na semana passada, o primeiro que fizeram juntos em quase 20 anos, me pegou em cheio. Reavivou a brincadeira inconsequente do passado e me mostrou como o sentido dela se perdeu.

A voz de Caetano, que aveluda o que alcança; o repertório de clássicos; o violão percussivo de Gil; os arranjos acústicos belíssimos; a elegância discreta dos dois senhores de 70 anos, Caetano de sapatênis, Gil de chinelinho. Como "matar" aquilo que o tempo provou imortal? Essa foi minha primeira lição.

A outra doeu mais: realizar que a morte chegou, antes, para o jornalismo que se dedicava a enquadrar o presente -e até o futuro.

A internet não multiplicou apenas as informações e as plataformas de acesso a elas. Multiplicou as vozes também. Hoje, cada um escolhe sua manchete. Faz sua hierarquia.

O jornalismo vive, mas quando provoca reflexão, cobra o poder público, defende a cidadania. O simples ordenamento do noticiário é incapaz de se sobrepor à cacofonia.

Que Caetano e Gil tenham se reunido em Brasília num tributo a Ulysses Guimarães -símbolo de uma gravidade que deixou de existir- foi só mais uma ironia implacável.

melchiades.filho@grupofolha.com.br

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