São Paulo, domingo, 01 de janeiro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Sem a verdade não há paz

CLÁUDIO HUMMES


Também aqui no Brasil, durante o ano que passou e neste ano entrante, a mentira fez e faz seu espetáculo

Em cada novo ano que iniciamos, cabe repor a questão da paz. Por sinal, a Igreja Católica celebra há décadas, no dia 1º de janeiro, o Dia Mundial da Paz, e os papas sempre enviaram ao mundo, a todas as pessoas de boa vontade, uma mensagem específica para a data. Bento 16 continuou a tradição. Enviou uma mensagem para esse dia da paz de 2006, tomando por tema "Na verdade, a paz".
A determinação firme de Bento 16 de empenhar-se na construção da paz se manifestou desde o início de seu pontificado. Na mensagem, diz: "Desejo uma vez mais reiterar a firme vontade da Santa Sé de continuar a servir a causa da paz. O próprio nome -Bento- que escolhi no dia da eleição para a cátedra de Pedro pretende indicar meu convicto empenho a favor da paz. De fato, com ele quis fazer alusão seja ao santo patrono da Europa (são Bento), inspirador de uma civilização pacificadora no continente (europeu) inteiro, seja ao papa Bento 15, que condenou a Primeira Guerra Mundial como um "inútil massacre", se empenhando para que fossem reconhecidas por todos as razões superiores da paz".
Na mensagem, Bento 16 coloca a paz no contexto da verdade: "Sempre que o homem se deixa iluminar pelo esplendor da verdade, empreende naturalmente o caminho da paz".
A paz é um anseio de todo ser humano. Então, ponhamo-nos todos a serviço da paz. As diferentes identidades culturais dos povos e dos grupos não devem ser obstáculo a essa busca comum da paz. Ao contrário, "todos os seres humanos pertencem a uma única e mesma família. A excessiva exaltação das próprias diferenças contrasta essa verdade basilar", diz o papa.
Culturas e civilizações diferentes, que coexistem no mundo e estão cada vez mais próximas umas das outras -por causa da globalização em marcha, apoiada nas novas tecnologias de comunicação-, devem enriquecer-se no contato e no diálogo de umas com as outras. De forma nenhuma estão fadadas a se hostilizar.
Hoje, quando a Europa se vê invadida por migrantes de culturas muito diferentes e quando atos de terrorismos vitimaram vários países, quando guerras -como no Afeganistão e no Iraque- assombraram o mundo, houve quem visse um choque de civilizações e culturas entre Ocidente e Oriente, com ingredientes de fanatismo e fundamentalismo religioso.
Nesse contexto, a palavra do papa soa oportuna: "É preciso recuperar a consciência de estarmos irmanados num mesmo e, em última análise, transcendente destino, para poder valorizar da melhor forma as próprias diferenças históricas e culturais sem as contrapor, mas as harmonizando com os que pertencem a outras culturas. São essas verdades simples que tornam possível a paz, e que são facilmente compreensíveis quando se escuta o próprio coração com pureza de intenção". Neste contexto hostil, diz o papa, "a paz se apresenta como (...) convivência dos diversos cidadãos numa sociedade governada pela justiça, na qual se realiza também, na medida do possível, o bem de cada um deles. A verdade da paz chama todos a cultivar relações fecundas e sinceras, estimula a procurar e a percorrer os caminhos do perdão e da reconciliação, a ser transparentes nas conversações e fiéis à palavra dada".
No que concerne aos terrorismos, Bento 16 os repudia com veemência: "Por suas ameaças e ações criminosas, (o terrorismo) é capaz de manter o mundo em estado de ansiedade e de insegurança".
Lembra as palavras de João Paulo 2º: "Quem mata com atos terroristas cultiva sentimentos de desprezo pela humanidade, manifestando desespero pela vida e pelo futuro: nessa perspectiva, tudo pode ser odiado e destruído".
Com relação ao fanatismo e fundamentalismo religioso, cita uma vez mais João Paulo 2º: "Pretender impor aos outros com violência aquela que se presume ser a verdade significa violar a dignidade do ser humano e, em última instância, ultrajar a Deus, de quem ele é a imagem".
Outro obstáculo à paz é a mentira, diz Bento 16. Ele o testemunhou na sua juventude. A mentira seduziu o povo alemão e o levou a uma guerra devastadora e vergonhosa, que incluiu o terrível holocausto dos judeus. "Como foi possível? Como seres humanos puderam perpetrar tão criminosa e desumana tragédia ou compactuar com ela?"
Lembremos ainda os horrores do comunismo, do fascismo, sem esquecer que o capitalismo manteve na miséria, fome e epidemias, milhões e milhões de pobres, até países inteiros. O papa lembra desses fatos do século passado, em que "aberrantes sistemas ideológicos e políticos mistificaram de forma programada a verdade, levando à exploração e à supressão de um número impressionante de homens e mulheres, exterminando mesmo famílias e comunidades inteiras", e conclui dizendo que "o problema da verdade e da mentira (...) aparece como decisivo para um futuro pacífico do nosso planeta".
Também aqui no Brasil, durante o ano que passou e neste ano entrante, a mentira fez e faz seu espetáculo nos depoimentos dados às CPIs sobre corrupção no Congresso Nacional. Só a verdade liberta e constrói paz. A mentira, não.


Dom Cláudio cardeal Hummes é arcebispo metropolitano de São Paulo. Foi arcebispo de Fortaleza (CE) e bispo de Santo André (SP).


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