São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

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Ortografia, lusofonia e direito

PAULO FERREIRA DA CUNHA, FERNANDO MACEDO, KAFFT KOSTA e ANDRÉ RAMOS TAVARES


Uma língua pode ser imposta pelo Estado ou só deve ser reconhecida por ele? O tema transpõe os murais do Direito

CAMÕES , Machado e Luandino são gigantes literários intocados pela nova ortografia da língua portuguesa, decidida pelos Estados da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). Porém, de outros textos relevantes não se pode dizer o mesmo. É o caso das próprias Constituições, normas máximas desses países, que terão de ser "recompostas" em nova ortografia portuguesa, adaptando-se às normas legais que, em cada país, incorporaram o acordo comum. Caso curioso, parecendo que a supremacia da Constituição, "cantada em verso e prosa", se curvará às determinações de uma lei quanto à sua própria grafia.
Uma lei a mudar as Constituições?
O Direito, que determina a mudança ortográfica, também é atingido por ela. Por ser, em essência, um fenômeno cultural, o Direito pode atuar sobre a língua, embora a ela não escape.
Há casos em que a própria Constituição trouxe para dentro de si a oficialização da língua portuguesa e das formas de expressão, como na Constituição brasileira. Ponto a que não chegaram os constituintes guineenses nem os angolanos, que nada disseram sobre o estatuto da língua portuguesa, sendo esta, porém, a língua oficial desses países. Em Portugal, a Constituição diz hoje simplesmente que a língua oficial é o português.
Compete a seus falantes (não só portugueses, mas todos os lusófonos) definir essa língua, em cada momento.
Efabulemos: poderia o Estado, numa provocação à literalidade de algumas Constituições, impor a mudança de uma vasta parte da ortografia portuguesa, desde que mantivesse a designação "língua portuguesa"? Uma língua pode ser imposta pelo Estado ou só deve por ele ser reconhecida?
O tema transpõe não apenas os murais do Direito, mas também os da linguística e da literatura. Na realidade, nenhum Estado pode impor uma nova língua a seu povo, mas apenas reconhecer e expressar-se naquela língua, adotada por esse mesmo povo. É o reconhecimento de uma identidade. O contrário só seria imaginável em conquistas imperialistas ou colonialistas que subjuguem outras culturas.
Uma reforma ortográfica, como está a ocorrer, não é uma reforma da língua. O acordo não muda a língua, muda apenas a sua forma escrita e, mesmo assim, moderadamente. Passa, portanto, nesse primeiro teste.
A língua é um elemento sociocultural vivo, em constante mutação, impassível de ser enclausurada, até mesmo pelo Direito. Sejam quais forem as regras linguísticas, sempre foram permitidas as liberdades poéticas; os neologismos continuarão a ser figuras presentes. A normatividade da língua tem limites; deve ser prática, não um dogma.
Além disso, a língua (no seu conjunto) contém, em si, a identidade de um povo. Seria indesculpável equívoco considerar a reforma, mesmo que ortográfica, uma banalidade formal qualquer. A indicação constitucional já é um forte indício da importância simbólica, política, cultural e ideológica da língua, para não falar da obviedade normativa de sua relevância: é um direito humano fundamental.
O problema não está, pois, no número de acentos ou hifens existentes ou na previsão normativa da língua em vigor. Está no atual contexto da reforma em vários países, no desleixo com que muitos Estados tratam a língua, um dos mais profundos valores culturais, que confere ao próprio Estado a sua base de sustentação.
Não se pense que o acordo vai se autoaplicar por milagre, sem o empenho profundo dos governos dos Estados lusófonos. E, se não houver esse empenho, a consequência será mais grave: porque então a norma cairá na semiaplicação, o pior limbo em que pode viver uma lei.
Na medida em que o próprio povo não é devidamente informado acerca da mudança ortográfica promovida pelo seu Estado, não pode compreender seu alcance cultural, o único que justifica a referida medida. A lusofonia consciente é ainda elitista. Aliás, a falta de percepção da nossa identidade e dos nossos laços é dos maiores problemas do comum dos cidadãos da lusofonia.
Em síntese, a uniformização, em si mesma considerada, é gráfica, exterior. Todavia, trata-se do início, de um primeiro passo, que pode favorecer a nossa afirmação como língua única, que realmente é. A variedade (que também é riqueza) da língua portuguesa está longe, muito longe, de se esgotar na ortografia.
Cada identidade nacional revela suas facetas próprias, estampadas na história de sua língua, podendo falar-se em direitos à língua portuguesa, e não em um direito universal à língua portuguesa. O direito universal é à livre comunicação, o que inclui a diversidade mencionada. O real problema, o mais fundo, é insolúvel, a não ser com a conscientização das autoridades e com muito intercâmbio. Provando-se, sociologicamente, que as novas medidas facilitarão o contato entre os povos e a circulação da leitura, serão muito bem-vindas.
Ninguém morrerá por contar com menos sinais gráficos. E ainda será capaz de ler melhor o(s) Outro(s).


PAULO FERREIRA DA CUNHA, professor catedrático e diretor do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (Portugal).
FERNANDO MACEDO, professor de direito constitucional e direitos humanos na Universidade Lusíada de Angola.
KAFFT KOSTA, professor de direito e juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça em Guiné-Bissau.
ANDRÉ RAMOS TAVARES, professor de direito constitucional da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e do Mackenzie e diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais.


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