São Paulo, segunda, 1 de fevereiro de 1999

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A vez da bola



O tamanho do Estado há de surgir da grandeza das tarefas sociais a que as políticas se dedicarem


Não é hora de se pensar em uma reforma desse sistema político, de apressar a refundação do Estado?
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI

Talvez porque não pretenda teorizar, mas simplesmente fazer humor, é que José Simão, assim me parece, tem sido um dos melhores comentadores da crise por onde nos metemos. No último dia 26 ele escreveu: "E o Brasil tá parecendo casa de viúva. Todo o mundo quer mandar. Jeffrey Goldman and Sachs: centraliza. Morley and Stanley: dolariza. Morgan and John: flutualiza". De uma tacada ele mostra que as diversas análises econômicas estão ligadas a interesses e que, portanto, devem ser entendidas pela ótica da política e não da teoria. Além disso, reporta a diversidade das opiniões à carência de uma firme decisão centralizada. Não se trata de negar a importância da teoria, mas não é porque uma proposição está correta teoricamente que traz em si a virtualidade de ser efetivada.
Como isso implica jogo de interesses, cabe desde logo perguntar quem leva a melhor com a implementação de uma tese e quais são as forças inimigas capazes de impedir isso. Acresce ainda que as teorizações se multiplicam quando fibrilam os processos decisórios.
Como se sabe, a enorme novidade do Plano Real foi ter encarado de frente os obstáculos políticos que se erguiam contra um ataque cerrado aos mecanismos de uma inflação crônica. Tanto é assim que foi pensado para ser processado em etapas.
Por isso me parecem levianas as críticas teóricas que dão ênfase à necessidade de se ter corrigida a sobrevalorização do real que se manifestou desde 1995. Havia condições políticas de se fazer essa operação? Sempre se argumentou que a memória inflacionária era de tal forma renitente que qualquer mudança no câmbio poderia acarretar uma quebra de expectativa em relação à estabilidade do real, fragilizando o Plano. Ora, se, de um lado, hoje se evidencia que essa mudança precisava ser feita para que não ficássemos à mercê da volatilidade do fluxo financeiro internacional, fiador de nossa aventura estabilizadora, de outro, fica patente que esse erro precisa ser avaliado tendo em vista cada momento em que a desvalorização se tornava viável pela ótica política.
O Plano Real, além de beneficiar certos setores da burguesia e sufocar segmentos das classes médias, trouxe vantagens para as classes populares que, durante décadas, sofreram na carne os efeitos do imposto inflacionário. Não vem daí a enorme popularidade de que gozou o presidente no seu primeiro mandato? Em contrapartida, já se sabia que a desvalorização do real implicava, como já tinha acontecido em outros países, um período de instabilidade em que a moeda despenca sem controle, acarretando uma recessão de tamanho imprevisível.
Não é natural, assim, que o governo tentasse uma desvalorização controlada, hesitasse em encarar de frente medidas drásticas, sobretudo enquanto o fluxo de dinheiro internacional continuava aparentando nos ser favorável, enquanto os ganhos com a abolição do imposto inflacionário ainda se manifestavam e a credibilidade do próprio governo se mantinha a salvo? Se nessa hesitação ele foi além do necessário (o tamanho das nossas dívidas, o acordo com o FMI, com a vexatória cláusula de termos aqui um representante permanente dessa instituição, a submissão a um processo selvagem de mudança cambial o comprovam) todos os enganos precisam ser avaliados politicamente, assim como as análises de cada assunto e os remédios propostos.
Dizer apenas que interesses maiores do país ficaram subordinados ao interesse menor da reeleição do presidente, embora esse discurso possa unir a oposição, deixa de lado os diversos vetores que articularam a política brasileira nos últimos tempos. Mas seja como for, convém ter presente que, se o Brasil se tornou a bola da vez dos ataques que o capital financeiro tem feito sistematicamente contra países emergentes, a estratégia de nossas defesas e de nossos contra-ataques deve ser pensada e estruturada em vista dos movimentos da bola de nossa política como um todo.
A crise cambial se traduz de imediato numa crise de credibilidade. A idéia de que o real tinha seu poder de compra configurado na sua relação mais ou menos estável com o dólar está ainda tão arraigada na consciência popular que muita gente hoje passa a calcular a futura taxa de inflação tendo como parâmetro quanto o dólar vai ficar mais caro. A partir da hora em que o governo não foi capaz de controlar a desvalorização da moeda, assiste-se à perda de sua credibilidade. A crise cambial aprofunda a crise política. E como está no início de seu novo mandato, não é de estranhar que haja gente pensando e fomentando uma crise institucional. Assim, cai-se no erro simétrico de se imaginar que tudo se resolve pela política, como se a ação humana pudesse desconhecer a força das coisas e não requeresse um conhecimento teórico e técnico das tensões e dos obstáculos de cada situação em que se envolve.
Acontece que não existe apenas uma política, mas várias, e se os argumentos técnicos forem manipulados apenas de um ponto de vista político, voltando suas costas à boa teoria, podem resultar num entusiasmo nacional, numa comoção popular que, por sua própria natureza, só pode desaguar num despotismo obscurantista. Além disso, para evitar uma recaída no pensamento de curto prazo, queiramos ou não as medidas consecutivas à mudança do sistema de câmbio devem, creio eu, levar em conta um projeto nacional, o que implica pelo menos considerar dois desafios à nossa política econômica atual. Em primeiro lugar, ela depende de uma relação sadia com as corporações transnacionais, na medida em que essas detêm o controle das novas tecnologias, aquelas de que precisamos nos apropriar para virmos a ter um parque produtivo capaz de competir no mercado internacional. Em segundo, ela precisa encontrar formas de dualidade, de sorte que os setores tecnologicamente mais avançados, que não geram muitos empregos, convivam com setores tecnologicamente mais atrasados, sendo contudo capazes de absorver a massa desempregada do país.
Agora não interessa apenas discutir se os novos processos produtivos geram ou não desemprego estrutural. Enquanto tivermos uma taxa crescente de desemprego, não há como deixar à míngua tanto os desempregados de hoje quanto a enorme parcela da população brasileira, que nem mesmo tem tido a oportunidade de penetrar no mercado nacional. Em que medida as fronteiras agrícolas são capazes de absorver essa mão-de-obra desesperada? Quais serão os serviços que poderão sobreviver e gerar empregos? As respostas a essas e outras tantas perguntas do mesmo gênero não são apenas políticas, mas também teóricas. Sem esses conhecimentos, as políticas caem no vazio e se combatem tendo em vista só os interesses dos grupos que lutam pelo poder.
Não é, contudo, o que está acontecendo? Mesmo quando se analisa apenas as diversas propostas de política cambial, logo se nota que elas se alinham em vista de dois pólos antagônicos. De um lado, a perspectiva neoliberal, hoje em declínio, propondo que tudo deva ser resolvido pelas livres forças do mercado; de outro, a perspectiva de esquerda, que desde o momento em que aceitou conviver com o mercado, está sempre pensando em formas de emperrar seu funcionamento. Não creio que essa polêmica, no fundo entre liberais e comunitários, se resolva no plano da mera luta ideológica. Hoje me parece mais conveniente tomar um banho de realidade e examinar caso a caso como se entremeiam forças do mercado com uma boa política de intervenção estatal. O tamanho do Estado há de surgir da natureza e da grandeza das tarefas sociais a que as políticas se dedicarem, cada uma delas ainda reconhecendo que a satisfação dos interesses particulares que as sustentam também dependem da satisfação de muitos interesses coletivos, de que o sistema político como um todo há de cuidar.
Estamos mergulhados numa profunda crise econômica. Em que medida o governo de FHC é responsável por ela? Para uns ele é a própria crise, para outros representa o espaço de racionalidade que ainda sobra numa situação de caos interna e externa. Como esse juízo é político e coletivo, ele se constrói aos poucos na consciência do povo, sendo que esse erro ou aquele acerto passam a ser reavaliados pelo sucesso ou insucesso do currículo como um todo do agente político. Crises de credibilidade são superadas quando se ultrapassa com bom êxito o período da crise. Desse ponto de vista, há muitos dados ainda para serem jogados. Esse caráter "post festum" do juízo político se acentua em governos democráticos. Quem ainda lembra das pesadas críticas contra o governo Montoro? De tão indeciso, o governador teria pedido ao garçom que lhe servia café tempo para decidir se iria tomá-lo com ou sem açúcar. Hoje é louvado como modelo de administração democrática.
Neste momento cada um julgará FHC do ponto de vista de seus interesses políticos, mas essa é a única ótica possível pela qual devemos avaliar nossa situação delicada? Todas as vicissitudes por que passou o Plano Real ainda mostram que o sistema político como um todo está falhando na sua capacidade de tomar decisões. Um governo considerado fraco é capaz de enfiar pela goela abaixo do Congresso a contribuição previdenciária dos inativos e uma nova CPMF. Mas não é essa forma de decidir que está sendo posta em xeque pelos fatos? O que adianta vencer uma batalha quando, na próxima, todas as forças precisam de novo ser reaglutinadas e realimentadas? Muito responsável pela crise econômica em que estamos metidos é o sistema político como um todo, que faculta despotismo esclarecido ou obscurantista, fisiologismos das mais variadas espécies, figuras carismáticas ou volúveis, em suma, um panorama de situações folclóricas que travam o processo decisório. Tendo em vista que isso está acontecendo no âmbito dos três Poderes da República, cuja articulação se torna cada dia mais problemática; tendo em vista que cada autoridade passa a maior parte de seu tempo e gasta seus preciosos esforços tentando remover obstáculos que inibem sua ação, parece-me evidente que a crise política pode assumir a forma de uma crise de Estado. É curioso notar que, não havendo vácuo de poder, certos setores da sociedade civil tentam funcionar como partidos, em particular a mídia, que sempre reflete a política em negativo. Não é que uma empresa jornalística propõe a centralização do câmbio, outra, a demissão de um ministro? Diante de tanto desatino, não é hora de se pensar em profundidade uma reforma desse sistema político como um todo? De apressar a refundação do Estado, em vez de cairmos de novo na rotina de uma análise e de propostas que se consomem no curto prazo?


José Arthur Giannotti, 68, filósofo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Universidade de São Paulo) e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) .



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