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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
Lágrima sobre a necessidade
AO DEBATER delitos e penas,
convém atentar às idéias
que informam a ordem social vigente. Por séculos, travam-se
combates por uma vida justa, igualitária e livre, em um mundo contraditório, que nega esses princípios e corrói o padrão liberal, hoje
batizado "neo".
J. Locke enunciou os pressupostos do liberalismo ao basear estado
natural e governo civil no direito à
propriedade. Este deriva da posse e
uso do "poder" que o homem tem
sobre seu corpo e suas virtualidades: ao efetivar essa força no mundo, e deste apoderar-se, o indivíduo
se autoconstitui e se humaniza. Todos têm a propriedade inalienável
de si mesmos: "o labor de seu corpo
e o trabalho de suas mãos são propriamente seus". Também o mundo é formado pelo ato humano:
sem este, a natureza é deserto,
"waste land".
Dessa apropriação derivam os
atributos humanos: "Nada é mais
evidente que as criaturas da mesma espécie e ordem, nascidas para
as mesmas vantagens da natureza e
uso das mesmas faculdades, devam
ser iguais entre si, sem sujeição". A
taxinomia, método da história natural, capta propriedade, igualdade
e liberdade como inerentes a seres
da mesma categoria. Só os espécimens completos unem-se para resguardar "suas vidas, liberdades e
bens". A ciência natural dá-se, aí,
como política: a igualdade específica define as regras para legitimar a
desigualdade e discernir o inferior.
Esse quadro remete à idéia de
crime, quebra da lei e punição. A
igualdade dos membros plenos da
espécie (os proprietários) implica a
desigualdade dos que negam a regra, os degenerados. Perigosos, devem ser extintos como predadores:
leões, lobos, tigres, aves de rapina.
A pena de morte cabe mesmo a delitos menores. Aplica-se até ao ladrão que não feriu nem atentou
contra a vida de sua presa, pois a
simples ameaça à liberdade pode
colocar em risco tudo o mais. Do
furto, deduz-se o ataque ao indivíduo em sua integridade: vida, liberdade, posses. O roubo deve ser pago com a morte: roubar os bens
materiais é roubar a vida.
A lei da natureza, conhecida e
aplicada pelos proprietários, só é
real como força repressiva, do contrário seria vã. O poder de "todos"
concentra-se em "cada um" e converte-se no comando de uns sobre
outros. A igualdade funda o domínio. Mesmo as prerrogativas do
magistrado deduzem-se das condutas correntes. O estado de natureza prolonga-se na sociedade civil.
Sem cogitar a gênese do crime,
Locke insiste no rigor do castigo,
evidenciando a força compacta que
originou as desigualdades modernas. Irremissível, o criminoso deve
ser extirpado. Se fiel esse triste retrato, aos que recusam a truculência nada mais restaria que uma lágrima sobre a necessidade.
sylvia.franco@uol.com.br
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às
quintas-feiras nesta coluna.
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