São Paulo, sábado, 01 de março de 2008

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O STF deve proibir as pesquisas com células-tronco embrionárias?

NÃO

Entre células e pessoas: a vida humana

LUIZ EUGENIO MELLO

NASCER, VIVER, morrer. Eventos claros, concretos, sobre os quais não temos dúvidas. Nada pode ser mais longe da verdade. É claro que para a maioria das situações é isso mesmo. Mas nas situações-limite, as certezas se tornam fumaça, e as possibilidades se ampliam. Assim, a definição de morte para o ser humano é, ainda hoje, objeto de discussão.
A definição mais amplamente aceita considera que a morte do ser humano decorre da parada irreversível das funções cerebrais. O traçado do registro eletrencefalográfico do córtex cerebral isoelétrico, isto é, ausência de sinal por determinado período de tempo, permite, no Brasil e na imensa maioria dos países, o diagnóstico de morte cerebral. No Japão, só em 1997 essa definição passou a ser aceita.
O que levou a estabelecer essas definições? Qual o motor dessas mudanças? Certamente, o avanço da ciência e a perspectiva ampliada dos transplantes de órgãos, pois foi a descoberta de drogas imunossupressoras mais potentes e menos tóxicas que permitiu um grande salto na área de transplantes. Com isso, veio a necessidade jurídica de um marco legal claro e preciso que fundamentasse a remoção de órgãos e assim permitisse o milagre do renascimento para milhares de pessoas. Mas não seria a morte a parada do coração? Ou a parada da respiração, o sopro da vida? Certamente, é possível definir a morte com bases em outros critérios. Dessa forma, como qualquer definição humana, mesmo essa, que à primeira vista parece inequívoca, é resultado do arbítrio humano e, portanto, objeto de controvérsias. É, sobretudo, estabelecida de acordo com usos, costumes e possibilidade de cada sociedade.
Assim também é a definição de vida, ou melhor, da vida de um ser humano. A maioria de nossas células tem vida. Nosso sangue, por exemplo, é um material biológico vivo. Mas o direito brasileiro entende que podemos colher células humanas vivas.
Estudá-las, usá-las para diagnóstico e para tratamentos. Podemos manipular essas células. Podemos aplicar toxinas e observar suas reações. Em todo o mundo, laboratórios de pesquisa mantêm diferentes células humanas em cultura. No Brasil, centenas de laboratórios de pesquisa alimentam e reproduzem células humanas em recipientes de vidro e de plástico. Dependendo da pesquisa, algumas dessas células são inclusive imortalizadas. Sempre que manipuladas em laboratório, essas células estão sujeitas a considerações de natureza ética.
São amparadas por regras e leis que definem como podem ser usadas. Portanto, seu uso é justificado e permitido. Destruir uma célula não equivale a destruir um ser humano. Matar uma célula não corresponde a matar um ser humano.
Essa dimensão está na base do julgamento que se aproxima, no Supremo Tribunal Federal. É permitido o uso de células-tronco embrionárias, segundo a Lei de Biossegurança, aprovada pelo Congresso Nacional em 2005? Ou seria o seu uso um atentado à vida, um direito básico do ser humano e protegido pela Constituição? O cerne da discussão é sobre o inicio da vida, no sentido do surgimento de um novo ser humano. Mas esses limites não são claros. Os limites tornam-se ainda mais nebulosos quando essas células-tronco embrionárias nunca estiveram em um corpo humano. Células-tronco embrionárias produzidas em laboratório merecem cuidados. Mas são células. Não são pessoas dotadas de direitos.
Milagres, como sabemos, são raros.
Para todos os transplantados de coração, fígado, rim, medula óssea, esse milagre ocorreu. Renasceram. Adiaram o inevitável confronto com a morte. As pesquisas com células-tronco propõem o mesmo tipo de milagre. Um embrião produzido em laboratório, sem condições para implantação em um útero de uma mulher, ou nos termos da lei, um embrião inviável, que seria descartável, não é uma pessoa humana. O entendimento de que esse embrião inviável é um conjunto de células, mas não é uma pessoa humana, permite que a ciência avance e que possamos sonhar com novos milagres.


LUIZ EUGENIO MELLO, 50, médico, é pró-reitor de graduação da Universidade Federal de São Paulo e presidente da Federação de Sociedades de Biologia Experimental.

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