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OTAVIO FRIAS FILHO
Ecos de 64
Um dia desses, numa dessas conversas entreouvidas em filas de
espera, um garoto de seus dez anos
perguntava ao pai, que lia jornal, que
história era essa de golpe militar em
1964. Distraído, o pai respondeu que o
Brasil estava indo para um rumo muito "social" -foi a expressão- e que
por isso os militares resolveram intervir para instalar uma ditadura.
Explicação bastante simplista, mas
na qual muitos adultos, sobretudo os
que eram crianças na época, acreditam piamente. É cômodo enquadrar
situações complexas em julgamentos
morais categóricos, mesmo quando
eles se fazem necessários. E não há dúvida, como lembrou ontem Marcelo
Coelho, de que a história é sempre
contada com olhos e valores de hoje.
É difícil entender 64 se não se tomar
a data como episódio de uma longa
guerra internacional, nunca declarada, mas que dividiu o planeta em dois
blocos antagônicos, liderados pelos
Estados Unidos e pela então União
Soviética. Embora sem enfrentamento aberto, essa guerra era total, estendendo-se da política à economia, à
cultura, à própria visão de mundo que
cada lado pretendia impor ao outro.
Cada facção desconfiava mortalmente das intenções da outra. No plano doméstico, a radicalização que precedeu o golpe militar foi em boa parte
uma escalada de retaliações retóricas,
em que direita e esquerda se superavam em termos de paranóia recíproca. Chegou-se a uma dinâmica em que
ou bem o governo Goulart seria deposto ou teria de aplicar um golpe para manter-se no poder.
A esquerda foi irresponsável, pois
não contava com forças capazes de
sustentar suas bravatas -conforme
ficou demonstrado pela facilidade
com que o governo constitucional
caiu. A direita foi oportunista, exagerando os temores de que Goulart (ou
Brizola) pudesse tornar-se ditador a
fim de resguardar interesses ameaçados pela maré montante de reivindicações sociais, como dizia o pai daquele garoto.
Outra meia-verdade é a idéia de que
a oposição ao regime militar era necessariamente democrática. Válida
para amplas parcelas do parlamento,
das associações de classe e da imprensa, essa idéia é falsa no que se refere à
oposição armada. Alimentada pelo
delírio de imitar o exemplo cubano, a
guerrilha foi uma aventura criminosa
que custou a vida de centenas de jovens ingênuos e idealistas.
Se, por um acaso milagroso, os grupúsculos armados tivessem derrubado a ditadura dos generais, seria para
instalar uma ditadura de partido único, nos moldes de tantas outras implantadas à força, com respaldo soviético ou chinês, na África e na Ásia ao
longo das décadas de 50 e 60. Fracassada, a aventura guerrilheira conferiu
legitimidade ao período de ditadura
nua e crua, entre 68 e 74.
A favor dos militares, faça-se a ressalva de que somente intervieram
quando a agitação de esquerda já
ameaçava a disciplina, cerne dessa
corporação hierárquica por excelência. Contra pesa o crime, moralmente
nefando e politicamente intolerável,
de haverem permitido que a tortura se
tornasse instrumento de ação do Estado -e contra adversários já indefesos.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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