São Paulo, quinta-feira, 01 de abril de 2004

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OTAVIO FRIAS FILHO

Ecos de 64

Um dia desses, numa dessas conversas entreouvidas em filas de espera, um garoto de seus dez anos perguntava ao pai, que lia jornal, que história era essa de golpe militar em 1964. Distraído, o pai respondeu que o Brasil estava indo para um rumo muito "social" -foi a expressão- e que por isso os militares resolveram intervir para instalar uma ditadura.
Explicação bastante simplista, mas na qual muitos adultos, sobretudo os que eram crianças na época, acreditam piamente. É cômodo enquadrar situações complexas em julgamentos morais categóricos, mesmo quando eles se fazem necessários. E não há dúvida, como lembrou ontem Marcelo Coelho, de que a história é sempre contada com olhos e valores de hoje.
É difícil entender 64 se não se tomar a data como episódio de uma longa guerra internacional, nunca declarada, mas que dividiu o planeta em dois blocos antagônicos, liderados pelos Estados Unidos e pela então União Soviética. Embora sem enfrentamento aberto, essa guerra era total, estendendo-se da política à economia, à cultura, à própria visão de mundo que cada lado pretendia impor ao outro.
Cada facção desconfiava mortalmente das intenções da outra. No plano doméstico, a radicalização que precedeu o golpe militar foi em boa parte uma escalada de retaliações retóricas, em que direita e esquerda se superavam em termos de paranóia recíproca. Chegou-se a uma dinâmica em que ou bem o governo Goulart seria deposto ou teria de aplicar um golpe para manter-se no poder.
A esquerda foi irresponsável, pois não contava com forças capazes de sustentar suas bravatas -conforme ficou demonstrado pela facilidade com que o governo constitucional caiu. A direita foi oportunista, exagerando os temores de que Goulart (ou Brizola) pudesse tornar-se ditador a fim de resguardar interesses ameaçados pela maré montante de reivindicações sociais, como dizia o pai daquele garoto.
Outra meia-verdade é a idéia de que a oposição ao regime militar era necessariamente democrática. Válida para amplas parcelas do parlamento, das associações de classe e da imprensa, essa idéia é falsa no que se refere à oposição armada. Alimentada pelo delírio de imitar o exemplo cubano, a guerrilha foi uma aventura criminosa que custou a vida de centenas de jovens ingênuos e idealistas.
Se, por um acaso milagroso, os grupúsculos armados tivessem derrubado a ditadura dos generais, seria para instalar uma ditadura de partido único, nos moldes de tantas outras implantadas à força, com respaldo soviético ou chinês, na África e na Ásia ao longo das décadas de 50 e 60. Fracassada, a aventura guerrilheira conferiu legitimidade ao período de ditadura nua e crua, entre 68 e 74.
A favor dos militares, faça-se a ressalva de que somente intervieram quando a agitação de esquerda já ameaçava a disciplina, cerne dessa corporação hierárquica por excelência. Contra pesa o crime, moralmente nefando e politicamente intolerável, de haverem permitido que a tortura se tornasse instrumento de ação do Estado -e contra adversários já indefesos.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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