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São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A política-vida e a cultura

CLÁUDIA COSTIN

A cultura tem estado no centro de importantes debates. Política cultural é tema amplo, que costuma oferecer a oportunidade de verificar o compromisso dos governos com a promoção social de seus cidadãos. Não é meu interesse discutir critérios específicos, e sim deixar claras linhas de ação. Minha tese é que a política cultural deve ser encarada como instrumento de transformação social tão poderoso quanto os que são aplicados em áreas como saúde e educação.
Como não poderia deixar de ser, a cultura está integrada a um projeto mais amplo de gestão da coisa pública no Estado de São Paulo. Um projeto que tem a ver com o que Anthony Giddens chamou de "política-vida", definida como "uma política de auto-realização, em que influências globalizantes penetram no projeto reflexivo do eu e, inversamente, em que processos de auto-realização influenciam as estratégias globais".
A política-vida é um passo adiante do que foi definido como "política emancipatória". Esta última torna imperativos "valores como justiça, equidade e participação". Busca reduzir a desigualdade, eliminar a exploração e a opressão. Incorpora tudo isso, mas enfatiza também a liberdade de escolha e entende o poder como o exercício cotidiano de capacidade transformadora. O poder é gerador, não hierárquico. O indivíduo deve ser capaz de desenvolver uma "autenticidade interior -um referencial de confiança básica por meio do qual a vida pode ser entendida como uma unidade contra o pano de fundo de eventos sociais em mudança".
Entender a cultura como um elemento de transformação social é parte de um projeto que percebe o exercício do poder como esboço permanente das linhas gerais de uma nova agenda política. Uma agenda que contempla a inclusão e, onde for possível, contribui para subverter a desigualdade social em todos os campos. A cultura é um deles, desde que bem gerida. Foi Gilles Lipovetsky quem afirmou que "a violência dos jovens excluídos em razão da cor ou da cultura é um "patchwork", resulta do choque entre (...) um sistema à base de desejos individualistas, de profusão, de tolerância e uma realidade cotidiana de guetos, de desemprego, de desocupação, de indiferença hostil ou racista".
Um governo comprometido com a inclusão deve estar atento a todas as formas assumidas pela exclusão. Nenhuma política cultural que se preze pode aceitar que recursos orçamentários sustentem projetos que não chegam aos cidadãos. Gilberto Gil comentou, recentemente, que o Ministério da Cultura "não pode ser apenas uma caixa de repasse de verbas para uma clientela preferencial". É preciso escolher onde, quando e como gastar. Não faz sentido manter um hospital que presta serviços apenas a uma elite, que é dispendioso e não atende à população, ou uma escola vazia.


Cabe ao Estado um papel forte como formulador de uma política cultural que garanta a livre expressão da criatividade


Cabe ao Estado um papel forte como formulador de uma política cultural que garanta a livre expressão da criatividade, a formação e celebração de talentos para as artes e o direito de todos a usufruir o que de mais belo e instigante a humanidade produziu. Nesse sentido, política cultural é intervenção permanente, que deve democratizar o acesso a bens culturais. Não cabe ao Estado passar a mão na cabeça de uma pequena casta de privilegiados ou julgar que a política cultural deve focar os produtores culturais, e não os cidadãos. Produtores são aliados, e não finalidade da ação pública no campo das artes. Por isso a preocupação constante com a relação custo/benefício de cada projeto, com qualidade e com indicadores claros de população beneficiada.
A gestão da coisa pública se faz com a cabeça, com critérios de racionalidade estritos e rigorosos. A inclusão social é uma meta a perseguir em qualquer política pública. No campo da cultura, incluir é franquear o acesso de um número representativo de indivíduos a esse ou aquele conjunto de bens culturais.
E, além disso, é construir parcerias inteligentes em iniciativas como o Projeto Guri, que contempla a formação de pequenas orquestras de crianças e jovens em situação de risco social. É lançar o programa "São Paulo: um Estado de Leitores", que estimula a leitura no maior Estado de um país que tirou o último lugar numa avaliação internacional de qualidade da educação, porque a juventude não tem o hábito de ler. É implantar o Pró-Bandas, que capacita regentes e músicos no interior, colocando inclusive partituras na internet, para agregar qualidade à vida cultural de municípios que têm, muitas vezes, nas bandas sua única iniciativa estruturada. É estimular a população a frequentar museus, teatros e cinemas, com tudo o que um Estado como São Paulo tem a oferecer.
O acesso à cultura é um direito do cidadão. Biscoitos finos para a massa, pregava Oswald de Andrade. Finos ou não, populares ou não, os bens culturais têm de chegar à massa. Ela precisa testá-los, sentir seu gosto, submetê-los a seu paladar. O bem cultural é um produto do conhecimento, e é dever do Estado expô-lo a um número que se deseja cada vez maior de indivíduos.
Esse ato de democratização do acesso a bens culturais possui um caráter tão transformador quanto o de construir um hospital ou uma escola. Uma das formas mais legítimas de combate à violência está na inclusão cultural. A cultura tem de se aproximar do cidadão comum, iletrado ou pouco letrado. É a política-vida de Giddens direcionada à cultura. É a política-vida de um governo efetivamente comprometido com a inclusão social.


Cláudia Costin, 47, mestre em economia pela Escola de Administração da FGV-SP, é secretária da Cultura do Estado de São Paulo. Foi ministra da Administração Federal (governo Fernando Henrique).


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