São Paulo, terça-feira, 01 de junho de 2004

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MARCIO AITH

As três mortes de João

SÃO PAULO - João Herbert vestia um uniforme laranja de presidiário quando o entrevistei pela primeira vez, em fevereiro de 2000, numa cadeia na cidade de Medina, no Estado de Ohio. Ele tinha 21 anos. Nascera no Brasil e chegara aos EUA aos sete, adotado por uma família dos arredores da cidade de Cleveland.
Herbert não falava português, não tinha contatos no Brasil e sua única memória do país de nascimento eram flashes. "Vivia num orfanato em São Paulo, num lugar com um nome esquisito [bairro de Carapicuíba]. Me lembro de algumas imagens, da quadra de futebol, dos arranha-céus e de uma piscina sem água", disse ele na ocasião. Nos EUA, ainda menor de idade, fora preso por tentar vender maconha a um policial disfarçado. Por isso, estava sob ameaça de deportação, pois caíra no lodaçal de duas aberrações legais. Os EUA, à época, não concediam automaticamente a nacionalidade americana a adotados. Além disso, a lei de imigração mudara após o atentado que tinha destruído um prédio federal em Oklahoma em 1995. Estrangeiros condenados por quaisquer crimes passaram a ser deportados depois de cumprirem suas penas. Ou seja, uma criança adotada e infratora equiparava-se a um terrorista estrangeiro.
"É como se eu não tivesse país, não pertencesse a lugar nenhum", disse ele naquela conversa. "Nasci brasileiro, me transformei em americano e querem que vire brasileiro de novo."
Herbert foi deportado, depois de mofar na cadeia por 28 meses, durante os quais me telefonava com freqüência. Demonstrava medo. Também perguntava como eram as mulheres e os empregos brasileiros. Ao chegar ao Brasil, foi morar em Campinas, a convite de um pastor batista. Deu aulas de inglês, casou-se e separou-se. Na semana passada, foi assassinado com seis tiros perto de sua casa, no bairro Jardim São Pedro de Viracopos. A polícia credita o crime a dívidas com traficantes, mas ninguém sabe ao certo o que ocorreu.
Herbert viveu o pior dos mundos -no Brasil e nos EUA. Estou para conhecer uma história mais inacreditável que essa.


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