São Paulo, terça-feira, 01 de junho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Um retrocesso

ANTONIO CARLOS MAGALHÃES

Em princípio, sou, como sempre fui, contrário a que se alterem forma e conteúdo das leis ao sabor das circunstâncias de momento. Não estou defendendo nada de novo, mas insisto na necessidade cada vez maior de leis bem elaboradas, para que possam produzir efeitos, sobretudo efeitos sociais, o mais longamente possível.
É por isso que me oponho ao regime de urgência na tramitação de projetos que exigem um estudo mais acurado, a fim de que se evite a aprovação de matérias que, nem bem se transformaram em leis, já são susceptíveis de correções. A emenda constitucional 32 é um caso típico de matéria que deveria ter sido mais amadurecida.
A emenda 32, é bom recordar, aprovada em 2001, alterou nove artigos da Constituição de 88, entre eles o 62, que trata das medidas provisórias (MPs), um instrumento de discutível legitimidade numa democracia, que confere ao presidente da República o direito de legislar, muito embora somente em casos de relevância e urgência, isto é, em situações de estrita excepcionalidade. É o que diz o texto da lei, embora a realidade seja hoje bem diferente.


O presidente da República precisa usar menos medidas provisórias; só quando houver urgência e relevância


O presidente da República, nunca é demais lembrar, foi eleito para desempenhar funções executivas, mas as medidas provisórias lhe dão o direito de legislar, como se parlamentar fosse. Conquanto devam ser submetidas de imediato à apreciação do Congresso Nacional, a verdade é que as medidas provisórias já nascem como leis. Eu acho que deputados e senadores falharam na redação da MP 32 e, agora, temos que correr atrás dos prejuízos que não as medidas provisórias em si, mas a maneira abusiva como elas vêm sendo usadas, acarretam ao Congresso e à nação. O art. 62 da emenda 32 reserva dois parágrafos, quatro incisos e quatro alíneas para enumerar as matérias sobre as quais as MPs não podem editar, entre elas nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos, direito eleitoral, penal, processual penal e processual civil, organização do Poder Judiciário, Ministério Público e matérias sujeitas a lei complementar.
O que não está expressamente proibido na lei presume-se que esteja implicitamente permitido. Foi um equívoco. O parágrafo 6º, inciso IV, do art. 62 da emenda é de uma infelicidade dolorosa. Recordo aos leitores o que diz o parágrafo a que me refiro: "Se a medida provisória não for apreciada em até 45 dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subseqüentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações da Casa em que estiver tramitando".
É a porta aberta para a entrada dessa figura mostrengo e vergonhosa que é o trancamento de pautas, que paralisa o Congresso, comprometendo sua imagem perante a opinião pública, já que praticamente anula o trabalho de deputados e senadores, que se vêem sem condições de aprovar matérias de interesse público simplesmente porque o senhor presidente da República decidiu legislar, entupindo o Congresso de medidas provisórias, muitas das quais de interesse público duvidoso.
Tanto se criticaram os governos militares, responsabilizando-os pela edição de um número sem conta de decretos-leis! Jamais os justifiquei nem justifico, mas entendia que um governo de exceção visse nos decretos-leis um instrumento mais eficaz que as leis para as condições excepcionais da época.
E hoje, com os poderes da República funcionando em sua plenitude, com um Congresso cada vez mais identificado com as aspirações populares, pronto, por conseguinte, para aprovar com rapidez as grandes demandas nacionais, o que justifica a enxurrada abusiva de medidas provisórias que nos remetem, sem eufemismos, aos tempos mais fechados da ditadura?
Repito que em princípio sou, como sempre fui, contrário a que se alterem forma e conteúdo das leis ao sabor das circunstâncias de momento, mas o parágrafo 6º do art. 62 da emenda 32 não pode continuar a viger como se fosse um cutelo sobre a cabeça de deputados e senadores. A legislação das medidas provisórias representa hoje, na prática, um grande retrocesso. Precisa ser corrigida. E o presidente da República precisa usar menos medidas provisórias; só quando houver urgência e relevância, como manda a lei.

Antonio Carlos Magalhães, 76, é senador pelo PFL da Bahia. Foi presidente do Senado (1997-99 e 1999-2001), governador do Estado da Bahia (1991-94) e ministro das Comunicações (governo Sarney).


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Denis Lerrer Rosenfield: O paradoxo do não-Estado

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.