São Paulo, terça-feira, 01 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O paradoxo do não-Estado

DENIS LERRER ROSENFIELD

Nunca é supérfluo lembrar que umas das funções básicas, senão a principal, do Estado consiste em assegurar a paz pública. Já no século 17, Hobbes sustentava que a razão de ser do Estado residia na segurança pública, única capaz de fazer com que os cidadãos pudessem conservar o seu corpo vivo, assim como usufruir do seu desejo e da integridade dos seus bens. Graças a essa condição essencial, os indivíduos reunidos numa organização estatal poderiam satisfazer as suas emoções e paixões, além de propiciar a prosperidade geral de todos.
Tendo essa idéia como fio condutor, vejamos alguns fatos recentes da história de nosso país.
Embora seja repetitivo, devemos ressaltar a falta de segurança em nossas grandes cidades, onde mora a maioria da população deste país. A repetição tem aqui a virtude de mostrar que a situação permanece inalterada, pois, se assim não fosse, não necessitaríamos reiterar algo que deveria ser óbvio para os nossos governantes. A Rocinha é um emblema que significa a ameaça que cada um sente da morte violenta. Esses territórios "liberados" do narcotráfico exibem, para a população desses morros, a ausência total do Estado, como se um estado de natureza, de violência desregrada, reinasse nessas áreas. O que é vivido ao extremo por esses moradores se espraia para toda a cidade sob a forma da violência generalizada, pondo em questão o Estado lá onde os seus símbolos ainda se fazem presentes.
Cria-se, assim, uma situação de desresponsabilização geral, num jogo de empurra entre as esferas estatais municipal, estadual e federal, como se nenhuma delas quisesse decidir. Nesse espetáculo lamentável, os cidadãos se tornam reféns do "Estado" ou de seu simulacro, que é, entretanto, financiado por eles. Ou seja, temos uma situação em que os cidadãos e empresas deste país financiam, por meio de impostos e tributos, um Estado incapaz de preencher essa sua condição mesma de existência.


Os cidadãos financiam um mecanismo burocrático que possibilita que suas próprias vidas estejam em perigo


Paradoxalmente, poder-se-ia dizer que os cidadãos financiam um mecanismo burocrático que possibilita que suas próprias vidas estejam em perigo. Trata-se de uma forma de masoquismo social. Talvez este país devesse dotar-se de leis que assegurassem aos seus membros não pagar impostos e tributos em casos de incompetência do Estado. Assim, uma bala perdida, um roubo e um seqüestro poderiam, inclusive, ser ressarcidos na forma de uma isenção fiscal. Enquanto não encontrarmos um meio de penalização de nossos governantes e de responsabilização do Estado enquanto tal, a situação permanecerá inalterada, pois os incompetentes, os que não cumprem com as suas funções, continuam sendo recompensados pelo poder de que usufruem.
O MST e movimentos congêneres, por sua vez, continuam sendo alimentados por dinheiro público, pelos recursos de cada um de nós, para "infernizar" o campo brasileiro com prolongações cada vez mais freqüentes em nossas próprias cidades. São Paulo tem tido situações desse tipo. Esses recursos públicos são transmitidos a esse movimento via "bolsas" do Fome Zero e "dízimos" pagos pelos assentados a seus dirigentes. A fome poderia ser remediada por intermédio de uma ação direta do Estado, que não teria esse movimento como intermediário e principal beneficiário.
E esse "inferno" não conhece limites, pois a sua razão social de ser há muito deixou de fazer parte do ideário desse movimento político, voltado para a destruição do Estado -por "burguês" e "formal"- e para a aniquilação da economia de mercado. A invasão de fazendas da Votorantim, Brascan e Unibanco não deve ser atribuída ao acaso nem a um afã de propaganda, mas a um objetivo bem preciso de destruir símbolos de uma economia capitalista, baseada, portanto, no mercado e na liberdade econômica. Dessa maneira, esse movimento revolucionário mostra claramente, com a destruição de uma plantação de eucaliptos, que o seu alvo reside na aniquilação de empresas que se interpõem a seu projeto político.
Paradoxalmente também, essas empresas estão financiando com seus impostos e tributos a criação de condições que tornariam inviável a própria existência de uma economia de mercado -na verdade, a existência das próprias empresas. Estranha situação essa em que empresas financiam a sua própria destruição e ainda elogiam um governo que fortalece um movimento político que mina os alicerces da liberdade econômica e política. Um movimento que diz, ademais, "seguir a Constituição" quando a avacalha por suas próprias ações.
Até quando o Estado poderá compactuar com uma espécie de "movimento/ partido" cujos dirigentes se vangloriam da incitação ao crime?

Denis Lerrer Rosenfield, 53, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e editor da revista "Filosofia Política".


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