São Paulo, quinta-feira, 01 de agosto de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma reforma para piorar

JOSÉ ROBERTO AFONSO

* O que é novo está errado. O que não está errado é velho. Resultado: em nada avançará a reforma tributária no Brasil. Pelo contrário, o sistema tributário brasileiro ficará muito pior.
Essa é nossa conclusão sobre as duas principais propostas do candidato Ciro Gomes (PPS) para mudar a cobrança de impostos no Brasil: um imposto sobre a renda consumida e outro sobre o consumo de bens supérfluos. Por vezes defendidos por ele como se fossem um só imposto, o que demonstra que não sabe bem do que está falando.
O "novo" seria acabar com o atual imposto sobre a renda que foi ganha e cobrar um sobre a parcela da renda destinada às compras de bens e serviços. Explicamos a lógica desse imposto de maneira simples: pegue seu salário e desconte sua poupança, o que restou foi usado para seus gastos e essa renda líquida seria a base do novo imposto.
Por princípio, cada trabalhador teria que dizer para seu empregador, todo mês, quanto do seu salário iria para a poupança ou ficaria embaixo do colchão, para que ele descontasse o imposto na fonte sobre a diferença. Por si só, a descrição já indica o caos que seria pagar salários neste país.
Se o acerto for na declaração anual, o cálculo será o inverso do que hoje é feito, ou seja, você não mais descontará o quanto gastou com escola, médicos, mas sim o quanto poupou. A imensa maioria da população brasileira passaria a dever o novo imposto de renda, porque 100% de suas rendas são gastas, e não poupadas. Fica claro o cúmulo da injustiça tributária: pobre não poupa; a classe média pouco poupa; já os ricos, quanto mais ganham, mais poupam, logo menos imposto pagariam.
Para contornar tal injustiça, é necessário isentar a grande maioria da população e cobrar alíquotas diferenciadas e muito altas dos ricos. Aí começa outro problema: são poucos os ricos que declaram Imposto de Renda no Brasil. Para manter a arrecadação, as alíquotas do novo imposto teriam que subir muito (provavelmente mais dos que os 50% do Lula). E, quanto mais os ricos poupassem, menos seria arrecadado e mais o fisco precisaria aumentar a alíquota. Enfim, não é tudo uma insanidade?
O canto (desafinado) da sereia para o empresariado seria ampliar a proposta, para também substituir impostos indiretos pelo Imposto Kaldor. Pela filosofia acima descrita, o produtor, comerciante ou prestador de serviço deixaria de ser o responsável pelo recolhimento de impostos sobre faturamento, que também passariam a ser cobrados do consumidor, na época em que apresentasse sua declaração de consumo.


Um imposto novo sobre a renda consumida, em vez da ganha, seria socialmente injusto, inviável e irresponsável


O Leão teria uma missão impossível pela frente: em vez de fiscalizar 5 milhões de pessoas jurídicas que mantêm uma contabilidade minimamente organizada, teria que concentrar todo o esforço fiscal em cerca de 60 milhões de pessoas físicas (CPFs regulares), que hoje não mantêm nenhuma escrituração de seus gastos. Logo a sonegação poderia ser fenomenal.
Um imposto novo sobre a renda consumida, em vez da ganha, seria socialmente injusto, inviável na prática e irresponsável como idéia.
O velho é cobrar um imposto especial sobre o consumo de bens supérfluos, notadamente fumo, bebidas e, eventualmente, automóveis de luxo. Claro que isso é correto: permite arrecadar e, ao mesmo tempo, combater consumos que fazem mal à saúde da população e às finanças do próprio governo.
Mas a proposta é velha, muito velha; deveria ter sido feita antes de 1965, quando foi criado no Brasil o tal IPI. Embora se chame Imposto sobre Produtos Industrializados, ele é basicamente um imposto seletivo, com alíquotas diferenciadas conforme a essencialidade dos bens. O IPI sempre foi cobrado na produção, porque é mais barato e mais eficiente cobrá-lo de umas duas fábricas de cigarro e cerveja do que correr atrás de cada supermercado, restaurante e bar num país continental. Trocar um contribuinte por outro seria, mais uma vez, um convite à sonegação.
Equívoco ainda maior é justificar um imposto sobre o consumo final alegando a experiência européia. Lá a tradição é de cobrar imposto sobre valor adicionado, ao longo da cadeia de produção e comercialização, tendo o seletivo como um imposto complementar e geralmente cobrado dos produtores ou dos atacadistas, ou seja, tudo semelhante ao sistema brasileiro, de ICMS e IPI.
Ao inverso do que disse Ciro, a importância relativa da arrecadação gerada pelos impostos seletivos é decrescente na Europa (diminuiu de um quinto para 11% da receita tributária total entre 1965 e 1998, segundo a OCDE).
Portanto o imposto sobre consumo seletivo não representaria uma reforma, simplesmente porque já existe e é um imposto velho. Talvez poucas reformas tenham sido tão desejadas e debatidas nos últimos anos no Brasil como a tributária. Não aconteceu. Em grande parte, porque vez por outra surgem idéias exóticas, propondo criar impostos que nenhum outro país cobra, ou, se cobrou, já abandonou. Num mundo cada vez mais globalizado, precisamos cobrar os mesmos impostos que todo o mundo cobra.
Em vez de entenderem ao menos do "feijão com arroz" do sistema tributário, alguns partem para invencionices. Sem conhecer os textos originais e as experiências de outros países, alguns candidatos recorrem a uma mistura atropelada de termos econômicos, que nem sempre dominam, mas cujas denominações pomposas e discursos fáceis impressionam a população leiga.


José Roberto Afonso, 41, economista, é mestre pela UFRJ.



Texto Anterior:
TENDÊNCIAS/DEBATES
Fernando Leça: Uma semana pela vida

Próximo Texto:
Painel do Leitor

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.