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São Paulo, sexta-feira, 01 de agosto de 2003

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JOSÉ SARNEY

O Iraque e não tanto

Vamos falar do Iraque, fugindo aos temas aqui da nossa terra. Este será um assunto que vai permanecer na agenda internacional por muito tempo e pode transformar-se em referência do que não se deve fazer, como o Vietnã, que até hoje amargura o povo americano.
A Guerra do Iraque começou depois do fim da guerra, com algumas lições: uma grande vitória militar nem sempre está acompanhada de uma vitória política e pode ser multiplicadora dos problemas que determinaram a ação da força. Esmagar Saddam e seu execrável regime é mais fácil do que ocupar o Iraque. A retirada de Saddam, que se destinava a colocar uma alternativa aos governos teocráticos que se consolidam no Oriente Médio, parece ter tido um efeito paradoxal, isto é, deu aos xiitas, maioria no país, a possibilidade de chegar ao governo, a médio prazo, como a única alternativa à desestruturação política.
Não foi só naquela região que a situação se complicou ainda mais. Na Europa, os rescaldos, ressentimentos e cobranças da guerra estão sendo contabilizados.
Uma coisa é claramente justa sob o ângulo americano. Eles têm, na realidade, um crédito extraordinário com aquele velho continente. Os EUA saíram do seu isolacionismo para engajar-se em duas causas européias e, em ambas, salvaram a Europa e a humanidade: sem eles, o nazismo teria dominado; sem eles, o comunismo não teria sido contido. E as duas coisas significavam a anti-Europa nos seus valores.
Portanto não é fácil aos americanos compreender por que os europeus se dividiram no apoio à sua aventura no Iraque. Ainda outras contas cobram os EUA: sua decisão de resolver o problema dos Bálcãs com Kosovo, possibilitando a expansão da Comunidade Européia, e o dinheiro que gastam com a Otan, o que diminuiu os orçamentos militares europeus, dando folga a que eles aplicassem seus excedentes recursos com o guarda-chuva de proteção social - o welfare state europeu.
Tudo isso dá a dimensão da cobrança dos EUA por solidariedade. Evidentemente, eles não compreendem, neste mundo de tempo real, que o governo não governa o povo, e sim que é este, por meio da opinião pública, quem comanda o espetáculo.
A não ser Blair, que tem uma tendência ao suicídio político, os outros líderes, Chirac à frente, querem viver, ou melhor, sobreviver.
O débito com os EUA existe. Mas as novas gerações não desejam pagá-lo dessa forma. Bush, com seu estilo republicano-texano, é um complicador. Este, então, não entende nada.
Desse modo, inevitavelmente, como os impérios não se deixam domar, vamos ter uma forte presença militar americana no Iraque e na Europa, durante largo horizonte.
Nesse jogo, América Latina, digo Brasil, não mete a colher, digo, o pé. É que vamos ter nossa agenda própria, composta de Alca, tapas e beijos.
É correta a posição de manter a linha firme de negociação, sem esquecer que nós também devemos aos Estados Unidos sua missionária cruzada pela democracia, pelos direitos humanos, pela liberdade, pela igualdade dos Estados, que ele cobra firme, na obsessão da abertura dos mercados.
O mesmo que a Inglaterra cobrou de dom João 6º, quando exigiu a abertura dos portos. Tudo mudou, mas não tanto.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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