São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O futuro dos valores

KOICHIRO MATSUURA

Num momento em que o mundo parece estar passando por uma crise de valores que não tem precedentes, é justo que uma organização como a Unesco, comprometida com o propósito de promover os valores da paz nas mentes de homens e mulheres, levante a questão do futuro dos valores. Entre a impressão amplamente difundida de que os valores deixaram de existir e a ameaça exagerada do retorno a uma chamada ""ordem moral", existe espaço para um estudo das tendências futuras.
É mesmo possível que nunca antes tantos valores tenham estado em disputa na história da humanidade. Um dos efeitos da globalização que mais chamam a atenção é o fato de ela trazer à tona a extraordinária pluralidade de valores e culturas. Se hoje estamos vivendo uma crise de valores, ela não é antes uma crise relativa ao significado dos valores e a nossa capacidade de nos governarmos e fixarmos um rumo para nossas vidas.
É possível falar de um ""crepúsculo dos valores"? As teorias que colocam a ênfase na relatividade histórica e cultural dos valores solaparam a crença nos absolutos filosóficos, religiosos e artísticos que o Iluminismo ainda subscrevia. No entanto falar diretamente do ""crepúsculo dos valores" significaria ignorar o fato de que, em muitas regiões do mundo, as pessoas continuam a confiar nos quadros de referência tradicionais para conferir sentido e ordem a suas vidas, como indivíduos e como sociedade. Nesse aspecto, não se pode afirmar que a crise de valores seja universal.
Num momento em que palavras e imagens de uma parte do mundo circulam até os televisores de todo o resto do mundo e em que a interdependência de países e de problemas aumenta de maneira concomitante, que região e que comunidade podem afirmar-se indiferentes e passivas quando os valores são postos em questão, onde quer que isso aconteça? Todas as culturas são iguais em termos de dignidade. Cada uma delas pode ser vista como encarnação de parte da totalidade humana. Assim, é preciso que todos os países sejam respeitados -o que não significa, de maneira nenhuma, que todos os atos sejam permissíveis.
O fato de os valores existirem hoje em justaposição estreita significa que nos dirigimos a uma colisão entre um mundo fundamentado na rejeição dos valores tradicionais e um mundo que recusa tal rejeição, com isso dando lugar ao que se pode chamar de "choque de valores"? Ou estaremos assistindo a uma mistura e hibridação de valores?


O desafio, hoje, consiste em assegurar que o esforço ético seja dirigido, em grande medida, à comunidade global
Sobre esse ponto, vale mencionar que cada cultura contém indivíduos e grupos que distinguem entre o que é justo e o que é injusto e fazem suas avaliações de acordo com essa distinção. Assim, todos os valores, dentro dos diferentes contextos culturais, são suscetíveis de serem avaliados, desvalorizados e reavaliados. Isso significa que os valores evoluem e que eles podem ser moldados em comum, debatidos e negociados entre atores potencialmente muito diferentes. O desafio, hoje, consiste em assegurar que o esforço ético seja dirigido, em grande medida, à comunidade global, e que essa nova orientação ética seja baseada na idéia do diálogo entre culturas. Tal diálogo deveria partir da premissa de que as culturas devem ser respeitadas, mas que os valores podem ser avaliados conjuntamente. Assim, é possível visualizar a forma futura dos valores em termos de novas sínteses.
Mas será que esse cenário não traz em seu bojo o risco de que os valores possam ser reduzidos a um jogo especulativo? Já se observou que, em um mundo governado pela lei da oferta e da demanda, nosso conceito de valores morais e estéticos tende a se aproximar do modelo do mercado acionário. O fenômeno da moda parece estar invadindo nosso conceito de valores. Como pode a questão central da educação continuar a ocupar seu lugar de direito em um mundo regido pelo efêmero?
É um paradoxo que um valor tão grande seja atribuído ao instantâneo num momento em que a emergência das sociedades do conhecimento, que tendem a transformar o sonho da educação vitalícia para todos em projeto viável, parece prefigurar um novo mecanismo para a formação de valores de longo prazo, valores que serão criados e transmitidos.
Podemos também nos indagar sobre as conseqüências das possíveis mudanças nos valores religiosos e espirituais e da ascensão de novos valores políticos. Enquanto a democracia representativa parece estar em crise em muitos países, a democracia associativa se desenvolve rapidamente. Quais são os valores inerentes a nossas novas redes de afinidade, aliança e comunicação? Em vista do declínio das estruturas patriarcais, estaremos rumando para uma feminização dos valores? Será que isso levará ao surgimento de novos valores, cuja transmissão exigirá uma educação multidisciplinar que responda à pluralidade das culturas? É isso o que está em jogo no diálogo de civilizações e culturas, que devemos encorajar.
Também devemos tomar cuidado para evitar os perigos duplos da erosão da diversidade cultural e do aumento da desigualdade.
Em uma era marcada pela globalização e pela ascensão de novas tecnologias, a preservação da diversidade cultural será um desafio-chave. Em vista da erosão da diversidade, precisamos desenvolver uma ética de responsabilidade para assegurar que todas as culturas desfrutem das condições necessárias para continuarem a existir.
A perda de significado talvez não passe de ilusão. Em vez disso, deveríamos estar discutindo as mudanças de significado e a criação de novos significados. Apostemos no futuro: e se a reforma radical à qual aspiramos se desse por meio do conhecimento e de sua difusão? Pois o conhecimento é essencialmente criação, renovação e troca.
É óbvio que não faltarão valores às sociedades do conhecimento que estão tomando forma -pelo contrário. O problema não será um problema de perda, mas de escolha. O papel da Unesco é estimular e servir de fórum para a realização de discussões desse tipo, que buscam redefinir e antecipar os valores de amanhã.

Koichiro Matsuura, 67, economista e diplomata japonês, é o diretor-geral da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura).

Tradução de Clara Allain


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