São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A economia na política

MARIO CESAR FLORES

O intervencionismo autoritário, protetor, cartorial, empresário e keynesiano do desenvolvimentismo nacionalista-estatizante dos 1930 aos 1970/80 foi bem-sucedido na ruptura do modelo agromercantilista colonial, na construção de razoável infra-estrutura de energia, comunicações e transporte (com defeitos, como a ênfase rodoviária) e na industrialização (com a substituição das importações).
Sua concepção estratégica estava alicerçada na harmonia entre a economia supostamente liberal, mas monitorada e intensamente permeada pelo Estado, e o trabalho incluído, tutelado pelo Estado. Em outras palavras, alicerçada na associação do Estado com a burguesia e o trabalho incluído -este, amparado por legislação outorgada pelo Estado e controlado pelo sindicalismo "peleguista", tudo concorrendo para a conformidade do trabalho com a lógica do modelo e para a contenção dos devaneios socializantes, inerentes à época.
Ser progressista implicava ser simpático ao estatismo, com particular afeição pelos bancos e subsídios públicos, pelo Estado como o grande freguês e cliente e pela proteção que "driblava" a necessidade de investir na produtividade e qualidade, porque estava assegurado o mercado interno cativo.
A estratégia assim configurada, a par do considerável progresso econômico, produziu também inconveniências e gerou retardos, a exemplo do desenvolvimento da informática, prejudicado pelo protecionismo. Mas suas maiores falhas foram o descaso com o mundo rural, de menor peso do que o urbano no modelo desenvolvimentista (estamos pagando hoje o não-cumprimento do Estatuto da Terra de 1964, que teria evitado a atual tensão no campo), e o fato de que o avanço econômico não foi acompanhado por avanço social coerente com ele, tendo havido até mesmo algum agravamento no nosso perfil distributivo: na segunda metade do século 20, a relação entre a renda dos 10% dos estratos superiores da pirâmide social e dos 10% da base praticamente dobrou.
O progresso econômico divorciado do social não é novidade brasileira: a interveniência estatal nunca foi igualitária e sempre se valeu do autoritarismo, em qualquer época ou região, das sociedades hidráulico-agrárias de antes de Cristo, na Suméria e no Egito, aos totalitarismos de direita e esquerda do século 20.



Ser progressista implicava ser simpático ao estatismo, com particular afeição pelos bancos e subsídios públicos
Distribuição minimamente razoável -ainda que não a ideal- só tem ocorrido nas ricas democracias ocidentais de economia de mercado, parametradas por cuidados com os requisitos básicos de solidariedade social e/ou destinados a evitar abusos econômicos dos monopólios, oligopólios, cartéis etc. -e o Brasil do nacional-desenvolvimentismo não se enquadrava nesse modelo político e socioeconômico.
Ao fim do século 20, cujos cenários ajudaram a combinar intervencionismo e autoritarismo, correspondeu a exaustão do modelo nacional-desenvolvimentista e o início de sua evolução consentânea com o mundo moderno. Resultado: setores insatisfeitos com a "abertura" pedem protecionismo, enquanto os exportadores competitivos reclamam do protecionismo praticado pelos EUA e pela Europa (mas todos querem dólar alto, que remunera a exportação e encarece a importação competidora).
Ressentidos com a redução do apoio que os beneficiava, insistem na "retomada do desenvolvimento", do que ninguém discorda, resta saber como fazê-lo responsavelmente; em última análise, insistem em mais gastos públicos e redução dos cuidados fiscais e dos juros básicos do Banco Central. Por ocasião de decisão cautelosa daquele banco, um industrial declarou "faltar ousadia". É fácil preconizar ousadia quando se é potencial beneficiário de seus efeitos positivos (se ocorrerem) e não se é responsável pelos negativos, como a inflação que atinge tragicamente o povo.
Tudo isso ajuda a compreender por que, vez ou outra, alguns atores do capital, do sindicalismo do trabalho organizado e incluído e do corporativismo público (administração direta e empresas estatais, agentes operacionais do Estado), ao mesmo tempo em que tecem loas à democracia, emitem referências elogiosas ao passado, fingindo "ignorar" a dimensão autoritária que estava por trás da viabilização das razões da nostalgia.

Mario Cesar Flores, 73, é almirante-de-esquadra reformado. Foi secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (governo Itamar Franco) e ministro da Marinha (governo Collor).


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