São Paulo, segunda-feira, 01 de agosto de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Verdade, política e filosofia

GILBERTO DUPAS

Nos dias que correm no Brasil, e dado no que se transformou o debate nacional, é útil uma discussão sobre a natureza da "verdade". Afinal, existe "a verdade"? Qual a melhor maneira de distinguir "aparência" de "realidade"? O senso comum diria ser a melhor forma tentar aproximar um fato da realidade "tal como ela é em si mesma". Mas, o que é realidade "em si mesma"?
Richard Rorty -da escola dos filósofos pragmatistas norte-americanos- propõe que, se temos dúvidas a respeito da "verdade" sobre uma de nossas crenças, só podemos avançar tentando justificá-las. Nesse sentido, quanto melhor a justificação que se oferece a uma tese, tanto mais provável é que seja verdadeira. Assim, ser capaz de convencer os outros seria sinônimo de "portar a verdade". Dito de outra forma, o olhar do outro -que influencia a própria visão que cada indivíduo tenta ter de si mesmo- é fundamental à construção de uma verdade social.


E agora? Como resgatar a esperança? Os Estados democráticos burgueses são o melhor que o mundo pode esperar?


A filosofia é, cada vez mais, sua própria época posta em pensamento. Tanto Platão como Marx estavam convencidos de que só os amplos fundamentos teóricos -os "grandes relatos"- permitiriam acabar com a injustiça.
Houve época em que se dizia que a justiça só poderia reinar se os reis se fizessem filósofos. Durante parte do século passado achou-se não haver a possibilidade de alcançar mais justiça sem ultrapassar o capitalismo e se a cultura não voltasse a ser um valor distinto da mercadoria.
Nos anos 90, parte da esquerda mundial pareceu se conformar com a "terceira via" social-democrata de Clinton, Blair e Fernando Henrique. E a direita norte-americana ainda parece confortável num estranho "capitalismo com misericórdia", anunciado por W. Bush na campanha da reeleição.
No Brasil, acreditou-se que havia chegado a oportunidade de mudar os rumos da desigualdade e da ética com um partido popular, o PT de Lula, chegando ao poder. E agora? Como resgatar a esperança? Os Estados democráticos burgueses são o melhor que o mundo pode esperar?
Salvar o futuro já foi atribuído à vontade de Deus, ao processo evolutivo, à história da linguagem e ao progresso científico e tecnológico. Rorty sugere que a proposta marxista foi o principal legado da obra de Hegel à imaginação social. Já o fracasso do socialismo real pareceu nos querer dizer que as sociedades complexas não podem reproduzir a si mesmas se não se entregarem à lógica auto-reguladora de uma economia de mercado.
Nesta altura, os termos "capitalismo" (usado em contraposição a comunismo), "ideologia burguesa" e "classe trabalhadora" pairam no ar à espera de que possamos propor e construir algo melhor do que a eficaz mas socialmente perversa economia de mercado. Ao inventar "história" como nome de um objeto que podia ser captado conceitualmente, Hegel e Marx possibilitaram que "conservássemos do cristianismo tanto o romantismo do relato sobre os símbolos feitos de carne como o sentido de solidariedade contra a injustiça".
O monopólio atual do capitalismo tem um enorme desafio: ser capaz de construir um discurso de legitimação que possua a mesma força dramática e a mesma compulsão do empolgante relato marxista.
Isso não parece nada fácil com os resultados que esse sistema vencedor acarreta em termos de pobreza, exclusão social e destruição ambiental mundo afora. É difícil propor às novas gerações a imagem do caubói cibernético bushiano como apta a substituir figuras como Lênin e Che Guevara. Mas cada situação da história é única, e só dela podem surgir novas formulações.
A tarefa da filosofia, embalada no manto clássico da "preocupação pela realidade última", tem que estar voltada a melhor enunciar aos homens as batalhas sociais e morais de seu próprio tempo. E a da política, é de dar conta de captar os anseios da sociedade e propor -dentro de suas possibilidades- uma conciliação entre teorias e práticas.
Mas é bom lembrar que, na filosofia, tanto a formulação como a justificação de uma teoria se apóiam nos ombros do patrimônio cultural comum da humanidade formado pela rede de teorias anteriores. Idem para a política e sua práxis. As experiências recentes que decepcionam deixam marcas profundas.
Recuperar o papel fundamental da política e radicalizar a democracia talvez signifique assumir que o objetivo dessa nova política não é fazer com que a pessoa reconheça o verdadeiro e o correto, mas sim lhe dar liberdade para que ela mesma decida o que é verdadeiro e o que é correto. E a verdade e o correto aparecerão sempre mais como aquilo que somos capazes de partilhar com os outros como sendo a verdade.
Evidentemente, no caso do PT e da política brasileira, tudo terá que ser recomeçado a partir de uma nova referência que ainda está por aparecer. O consolo e o caminho para o sistema partidário e para a nossa própria democracia -nesse momento, tão perplexa e doída- talvez estejam no próprio Nietzsche, quando nos afirma que "todo pensamento que se deixa surpreender por um novo questionamento, íntimo ou exterior, demonstra capacidade de recomeço".

Gilberto Dupas, 62, economista, é coordenador-geral do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP) e presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais. É autor, entre outros livros, de "Atores e Poderes na Nova Ordem Global" (Unesp).


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