São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Podemos trabalhar juntos

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, THABO MBEKI e GORAN PERSSON


É demais pedir a uma mãe cujo filho está morrendo de sede, hoje, que expresse preocupação com a conservação de mangues


A base da parceria global precisa ser um plano de implementação orientado à ação e dotado de metas e cronogramas claros

A generosidade da Terra não é inesgotável. Os oceanos não contêm um número infinito de peixes. Boa parte daquilo que é destruído uma vez pela superexploração ou a cobiça se vai para sempre. A Terra sustenta a vida e é o recurso que nos alimenta.
Hoje, abusamos dos recursos da Terra. Estamos nos alimentando de porções que pertencem às gerações ainda não nascidas. Os filhos de nossos filhos correm o risco de entrar neste mundo já carregando o peso da dívida criada por seus antepassados.
Não é uma opção, e sim um imperativo ""satisfazermos as necessidades do presente sem comprometermos a capacidade das gerações futuras de satisfazer as deles", conforme dizia o Relatório Brundtland, em 1987.
Trinta anos após a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Humano, em Estocolmo, e dez anos após a Eco 92, no Rio de Janeiro, a Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável está sendo realizada em Johannesburgo, entre 26 de agosto e 4 de setembro. Assim, o ano de 2002 será historicamente vinculado aos de 1972 e 1992 e marcará uma nova virada na consciência internacional do meio ambiente como questão e problema global.
Estará o mundo pronto para este novo desafio? A preocupação com a degradação do meio ambiente levou à histórica conferência de 1972, em Estocolmo. O resultado foi um lugar permanente conquistado para o meio ambiente na agenda global, o início da era do multilateralismo na proteção ao meio ambiente e uma crescente consciência popular. Houve o reconhecimento do fato de que não existe futuro individual -todos nós dividimos ""uma só Terra".
A proteção do meio ambiente é um esforço nobre em si. Mas a sobrevivência do meio ambiente é, também, a base estratégica da sobrevivência humana. Assim, a questão diz respeito sobretudo ao bem-estar humano.
A proteção da Terra precisa andar de par em par com medidas de combate à pobreza e promoção da segurança e dignidade humanas. Desenvolvimento e meio ambiente estão interligados.
Realmente, é demais pedir a uma mãe cujo filho está morrendo de sede, hoje, que expresse preocupação com a conservação de mangues e pantanais. É demais pedir a um homem cuja família está morrendo de fome que se preocupe com as consequências ambientais de suas práticas pesqueiras.
É, de fato, demais pedir a uma mulher que precisa cozinhar uma refeição para sua família esfomeada, hoje, que se preocupe com a sustentabilidade a longo prazo de suas práticas na coleta de lenha ou com as mudanças climáticas. A cada ano que passou desde 1990, 10 milhões de pessoas a mais entraram para o rol dos pobres. Mais de 1,1 bilhão de seres humanos vivem subnutridos, e 1,5 bilhão de pessoas vivem em regiões onde a água é escassa. E sabemos que, em algumas partes da África, o deserto está avançando ao ritmo de 10 km por ano.
O abismo entre ricos e pobres continua a crescer. E tudo isso num momento em que o mundo está desfrutando de um nível inusitado de produtividade global e acúmulo de capitais, desencadeado pelas forças da globalização durante a década passada.
Ficar assistindo passivamente enquanto a pobreza aumenta, as disparidades de renda e informação crescem e a degradação ambiental continua representa não apenas um fracasso humano e moral. É, também, um enorme desperdício de recursos -especialmente de recursos humanos, que constituem o fator mais importante para o desenvolvimento sustentável. Nesse contexto, o aumento do poder e da autonomia das mulheres e o encorajamento de uma perspectiva de igualdade entre os sexos constituem componentes cruciais. Ninguém pode se dar ao luxo de permitir que a situação continue como está.
Estamos convencidos de que, longe de constituírem um ônus, os investimentos e as políticas que promovem o desenvolvimento sustentável oferecem uma oportunidade excepcional. Em termos econômicos, eles ajudam a construir novos mercados e a gerar empregos. Em termos sociais, tiram as pessoas da marginalização. E, politicamente, reduzem as tensões, em torno de recursos, que podem levar à violência.
A Cúpula da Terra, no Rio em 1992, forjou um consenso mundial sobre a ligação inescapável entre a proteção do meio ambiente e o desenvolvimento econômico e social. Foram lançados os princípios do desenvolvimento sustentável. Essa ligação precisa agora ser traduzida para a prática, por meio de ações coletivas baseadas em conceitos e instrumentos que promovam novas políticas públicas nos níveis nacionais e internacional. O espírito do Rio de Janeiro levou a um consenso global quanto a um programa de desenvolvimento sustentável, além da Declaração do Rio e das convenções sobre as mudanças climáticas e a biodiversidade.
Os anos que se seguiram à Cúpula da Terra trouxeram acordos ambientais multilaterais de largo alcance. A consciência e a preocupação públicas cresceram ainda mais. É preciso continuar a levar essas conquistas adiante. Já respondemos à pergunta sobre o que fazer; agora devemos focalizar nossos esforços sobre como fazer, para podermos passar das palavras à ação.
O desafio fundamental que temos pela frente é desenvolver um paradigma que incremente a utilização sustentável dos recursos naturais e, ao mesmo tempo, inverta os padrões insustentáveis de produção e consumo. Essas mudanças exigirão que formemos uma parceria, reconhecendo que nossa responsabilidade comum diante da sustentabilidade global terá de abranger os desequilíbrios notáveis existentes entre diferentes países.
Hoje já não é mais possível que cada país focalize exclusivamente suas próprias preocupações. Na medida em que o mundo se desenvolve em ritmo acelerado, o patrimônio global público não pode ser monopolizado por alguns poucos. Por maior que seja um país, ainda é pequeno em vista do desafio que temos pela frente.
Sustentabilidade e crescimento devem ser os fatores da mesma equação, já que não pode haver sustentabilidade sem uma base financeira, nem base financeira sem acesso ao mercado, nem acesso ao mercado sem que venha acompanhado de uma perspectiva de solidariedade, que dará lugar a um tipo de crescimento que beneficie a todos.
O desenvolvimento sustentável poderá desencadear a modernização apenas depois que for dotado das condições sistêmicas de competitividade. A cúpula mundial de Johannesburgo é a oportunidade que têm os países do mundo de formar uma parceria global para a proteção do meio ambiente e para o desenvolvimento econômico e social. Uma parceria não apenas no paradigma doador-receptor, mas uma para a qual todos nós possamos contribuir.
Apenas uma parceria global entre governos, empresas e sociedade civil nos confere o poder necessário para fazer frente ao desafio. A base dessa parceria precisa ser um plano de implementação orientado à ação e dotado de metas e cronogramas claros. Um programa desse tipo, da ONU, constituiria uma contribuição imediata e palpável à busca por paz e segurança globais.
A parceria global precisa ser baseada em planos e compromissos que constituiriam um programa de ação para implementar as Metas de Desenvolvimento do Milênio, da ONU -que incluem melhor acesso a água, saneamento básico, energia, saúde e segurança alimentar. Ela deve incluir medidas concretas para promover padrões sustentáveis de consumo e produção.
Cidadãos preocupados em toda parte diriam, de maneira justificada, que já existem capital, tecnologia e conhecimento especializado suficientes para alcançarmos essas metas de erradicação da pobreza. Do mesmo modo, já possuímos conhecimento e recursos necessários para enfrentar o excesso de consumo, o uso ineficiente dos recursos naturais, a poluição e outros problemas ambientais.
O compromisso assumido pelo mundo, na Declaração do Milênio das Nações Unidas, de ""ajudar a África em sua luta pela paz duradoura, a erradicação da pobreza e o desenvolvimento sustentável", vai figurar com destaque na cúpula de Johannesburgo. A Nova Parceria para o Desenvolvimento da África, ou Nepad, cria uma estrutura importante de cooperação na região, com vistas a alcançar esses objetivos.
Não estamos começando do nada, há avanços positivos a partir dos quais se pode construir. Um deles é o consenso amplo que existe hoje quanto às metas do desenvolvimento. Outro é a participação maior da sociedade civil e das empresas. Também precisamos avançar com base na agenda de desenvolvimento de Doha e do consenso alcançado em Monterrey quanto ao financiamento para o desenvolvimento.
A meta é ajudar a fazer da globalização uma força positiva para todos, uma força que garanta ampla estabilidade econômica e política. Nós e nossos colegas chefes de Estado e de governo, representando os países do mundo, ao lado de representantes de todos os setores da humanidade, estamos reunidos em Johannesburgo. Um salto quântico na luta para eliminar a pobreza e avançar em direção a um futuro sustentável está em nosso alcance.
Nós, os anfitriões das conferências de Estocolmo, do Rio de Janeiro e de Johannesburgo, convocamos os governos e os cidadãos do mundo a aproveitarem a oportunidade da Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável para provarem que um novo paradigma é possível e que o desenvolvimento sustentável pode ser uma realidade.
Que Johannesburgo se torne o início de uma nova era de cooperação internacional e solidariedade global.


Fernando Henrique Cardoso, 71, sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é o presidente da República Federativa do Brasil. Thabo Mvuyelwa Mbeki, 60, é o presidente da República da África do Sul. Goran Persson, 53, é o primeiro-ministro do Reino da Suécia.

Tradução de Clara Allain



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