São Paulo, sexta-feira, 01 de setembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A constituição da liberdade

ANTONIO NEGRI e GIUSEPPE COCCO

Ao Estatuto da Igualdade Racial e à Lei de Cotas, a elite se opõe com uma cínica argumentação: o racismo seria produzido pelas cotas

A HISTORIOGRAFIA já mostrou que a Lei Áurea apenas reconheceu formalmente uma abolição que de fato já tinha acontecido.
Da mesma forma, votando a Lei de Cotas e o Estatuto da Igualdade Racial, senadores e deputados reconhecerão uma ação afirmativa que já acontece em quase 30 universidades públicas do Brasil. A elite mobiliza uma única e cínica argumentação: o racismo seria produzido pelas cotas.
No meio desse lixo conservador, uma questão merece ser aprofundada: o futuro do projeto de nação. Entre 1888 e 1930, a elite brasileira teve de enfrentar dois grandes desafios: o esgotamento do trabalho compulsório (da escravidão) e, em seguida, a indefinição da idéia de "povo" adequada ao projeto de nação.
Os escravos conquistaram a liberdade por diferentes formas de negociação e de conflito. Entre elas, a própria mestiçagem e a fuga constituíram potente linha de resistência biopolítica: a potência da vida. Essa dimensão constituinte da liberdade os tornava resistentes à nova forma de subordinação: o trabalho assalariado.
Os fazendeiros paulistas passaram a capturar os fluxos das migrações internacionais. Os primeiros imigrantes chegaram aos cafezais para trabalhar com os escravos, bem antes da abolição formal. "Homens livres na ordem escravocrata", que o marxismo vulgar e darwinista considera massa marginal disponível para o mercado de trabalho, eram, ao contrário, homens que não se deixavam proletarizar. Essa potência atravessou, como um facão, "Os Sertões", de Euclides da Cunha, até fazê-lo ver nos "rijos caboclos o núcleo de força de nossa constituição futura, a rocha viva de nossa raça".
Na virada do século, os fórceps positivistas não conseguiam forçar o nascimento de uma figura unitária do "povo". A República nascia velha! O quebra-cabeça é transposto nos anos 1930. O "nacionalismo" varguista fechava o país aos imigrantes internacionais, e o racismo se reorganizava: a mestiçagem era fixada na figura homogênea do "povo mestiço", produzido pela "cordialidade inter-racial".
Abandonadas as teorias eugênicas, o racismo ia se estruturando em uma infinita modulação cromática: "não domina porque é branco, mas quem domina é branco". O patriarcado oligárquico se mistura com a tecnocracia corporativa, formando um bloco de biopoder que rearticula a potência dos fluxos de vida dentro do projeto de desenvolvimento nacional.
Apesar dos esforços críticos do movimento negro, esse paradigma vai se sustentar até o final dos anos 1980. Só começa a desmoronar nos anos 90, quando o neoliberalismo reconhece a necessidade de uma "real democratização" das relações entre "raças, grupos sociais e classes" (Fernando Henrique Cardoso). Hoje, a oposição ultraconservadora que o PSDB faz à Lei de Cotas mostra quão superficiais eram os ensaios "libertários" de um liberalismo brasileiro incestuosamente viciado nos privilégios estatais.
Contudo, a essa altura, o movimento negro já era capaz de dar um novo lastro à luta anti-racista. O mito da democracia racial seria desmascarado e desmontado pelos militantes dos movimentos culturais nas favelas, dos pré-vestibulares para negros e pobres, das ocupações dos sem-teto, dos movimentos dos trabalhadores informais. Essas lutas são constituintes: tornam-se produtivas independentemente de sua homologação dentro da relação salarial (de emprego) e se expressam politicamente sem passar pela sua obliteração nacional.
Ora, nada seria mais inadequado do que subestimar essa inovação. O arco-íris das singularidades é irredutível a qualquer apreensão indentitária e multicutural. O desmoronamento da hibridação freyriana reafirma a mestiçagem como multiplicidade, devir aberto das identidades.
As dimensões imediatamente produtivas das novas lutas contra o racismo estão nas singularidades que cooperam e se mantêm como tais: afirmam afinidades relacionais, e não identidades substanciais (Viveiros de Castro). Não mais o "ser mestiço", mas o devir mestiço, negro, branco, aimara. Como dizia Deleuze, "o ser do devir". A constituição da liberdade se funda hoje no trabalho da uma multidão de singularidades, tal é a forma viva do desenvolvimento.
Por isso dizemos que "Lula é muitos". Não há aí nenhum líder carismático com quem nos identificamos, mas uma multiplicidade que não sabemos mais a quem "representa", que escancara os limites da representação, mas que expressa uma grande parcela dos brasileiros da senzala.


ANTONIO NEGRI, 72, filósofo italiano, é professor titular aposentado da Universidade de Pádua (Itália) e professor de filosofia do Colégio Internacional de Paris (França). Entre outras obras, escreveu, em parceria com Michael Hardt, os livros "Império" e "Multidão".

GIUSEPPE COCCO, 50, cientista político, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre outras obras, escreveu, com Antonio Negri, o livro "Glob(AL): Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada".


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Mário Magalhões: O preço do contra-ataque

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.