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A constituição da liberdade
ANTONIO NEGRI e GIUSEPPE COCCO
Ao Estatuto da Igualdade Racial e à Lei de Cotas, a elite se opõe com uma cínica argumentação: o racismo seria produzido pelas cotas
A HISTORIOGRAFIA já mostrou
que a Lei Áurea apenas reconheceu formalmente uma abolição que de fato já tinha acontecido.
Da mesma forma, votando a Lei de
Cotas e o Estatuto da Igualdade Racial, senadores e deputados reconhecerão uma ação afirmativa que já
acontece em quase 30 universidades
públicas do Brasil. A elite mobiliza
uma única e cínica argumentação: o
racismo seria produzido pelas cotas.
No meio desse lixo conservador, uma
questão merece ser aprofundada: o
futuro do projeto de nação.
Entre 1888 e 1930, a elite brasileira
teve de enfrentar dois grandes desafios: o esgotamento do trabalho compulsório (da escravidão) e, em seguida, a indefinição da idéia de "povo"
adequada ao projeto de nação.
Os escravos conquistaram a liberdade por diferentes formas de negociação e de conflito. Entre elas, a própria mestiçagem e a fuga constituíram potente linha de resistência biopolítica: a potência da vida. Essa dimensão constituinte da liberdade os
tornava resistentes à nova forma de
subordinação: o trabalho assalariado.
Os fazendeiros paulistas passaram
a capturar os fluxos das migrações internacionais. Os primeiros imigrantes chegaram aos cafezais para trabalhar com os escravos, bem antes da
abolição formal.
"Homens livres na ordem escravocrata", que o marxismo vulgar e darwinista considera massa marginal
disponível para o mercado de trabalho, eram, ao contrário, homens que
não se deixavam proletarizar. Essa
potência atravessou, como um facão,
"Os Sertões", de Euclides da Cunha,
até fazê-lo ver nos "rijos caboclos o
núcleo de força de nossa constituição
futura, a rocha viva de nossa raça".
Na virada do século, os fórceps positivistas não conseguiam forçar o
nascimento de uma figura unitária do
"povo". A República nascia velha! O
quebra-cabeça é transposto nos anos
1930. O "nacionalismo" varguista fechava o país aos imigrantes internacionais, e o racismo se reorganizava: a
mestiçagem era fixada na figura homogênea do "povo mestiço", produzido pela "cordialidade inter-racial".
Abandonadas as teorias eugênicas,
o racismo ia se estruturando em uma
infinita modulação cromática: "não
domina porque é branco, mas quem
domina é branco". O patriarcado oligárquico se mistura com a tecnocracia corporativa, formando um bloco
de biopoder que rearticula a potência
dos fluxos de vida dentro do projeto
de desenvolvimento nacional.
Apesar dos esforços críticos do movimento negro, esse paradigma vai se
sustentar até o final dos anos 1980. Só
começa a desmoronar nos anos 90,
quando o neoliberalismo reconhece a
necessidade de uma "real democratização" das relações entre "raças, grupos sociais e classes" (Fernando Henrique Cardoso). Hoje, a oposição ultraconservadora que o PSDB faz à Lei
de Cotas mostra quão superficiais
eram os ensaios "libertários" de um
liberalismo brasileiro incestuosamente viciado nos privilégios estatais.
Contudo, a essa altura, o movimento negro já era capaz de dar um novo
lastro à luta anti-racista. O mito da
democracia racial seria desmascarado e desmontado pelos militantes dos
movimentos culturais nas favelas, dos
pré-vestibulares para negros e pobres, das ocupações dos sem-teto, dos
movimentos dos trabalhadores informais. Essas lutas são constituintes:
tornam-se produtivas independentemente de sua homologação dentro da
relação salarial (de emprego) e se expressam politicamente sem passar
pela sua obliteração nacional.
Ora, nada seria mais inadequado do
que subestimar essa inovação. O arco-íris das singularidades é irredutível a
qualquer apreensão indentitária e
multicutural. O desmoronamento da
hibridação freyriana reafirma a mestiçagem como multiplicidade, devir
aberto das identidades.
As dimensões imediatamente produtivas das novas lutas contra o racismo estão nas singularidades que cooperam e se mantêm como tais: afirmam afinidades relacionais, e não
identidades substanciais (Viveiros de
Castro). Não mais o "ser mestiço",
mas o devir mestiço, negro, branco,
aimara. Como dizia Deleuze, "o ser do
devir". A constituição da liberdade se
funda hoje no trabalho da uma multidão de singularidades, tal é a forma viva do desenvolvimento.
Por isso dizemos que "Lula é muitos". Não há aí nenhum líder carismático com quem nos identificamos,
mas uma multiplicidade que não sabemos mais a quem "representa", que
escancara os limites da representação, mas que expressa uma grande
parcela dos brasileiros da senzala.
ANTONIO NEGRI, 72, filósofo italiano, é professor titular
aposentado da Universidade de Pádua (Itália) e professor
de filosofia do Colégio Internacional de Paris (França). Entre outras obras, escreveu, em parceria com Michael
Hardt, os livros "Império" e "Multidão".
GIUSEPPE COCCO, 50, cientista político, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre outras
obras, escreveu, com Antonio Negri, o livro "Glob(AL):
Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada".
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