São Paulo, terça-feira, 01 de dezembro de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Do começo à cura?

VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK


Nos próximos 20 anos, imagina-se que pelo menos 70 milhões morrerão em virtude da Aids, 55 milhões na mencionada África

VAMOS COMEÇAR pelo início: a infecção pelo HIV é uma doença realmente nova na espécie humana, por passagem de vírus de duas espécies de antropoides próximos à nossa linhagem, chimpanzés e gorilas, com mais uma outra passagem (o HIV-2) de macacos verdes africanos. Isso ocorreu no começo do século 20, e a enfermidade provavelmente existe desde 1930, mas só foi reconhecida em 1980.
Hoje calcula-se que 40 milhões ou mais de pessoas estejam infectadas pelo vírus da imunodeficiência adquirida, a imensa maioria pelo HIV-1. De 2 milhões a 3 milhões de indivíduos infectam-se por ano. Um número entre 10% e 20% menor morre de Aids anualmente, sobretudo na África.
Nos próximos 20 anos, imagina-se que pelo menos 70 milhões de criaturas morrerão em virtude do mal, 55 milhões na mencionada África. Isso vai levar ao que já é claro hoje: a uma importante queda da expectativa de vida, que na Zâmbia anda por 40 anos e, no Zimbábue, ainda menos, destruindo todas as conquistas na melhora desse índice desde 1960.
A prevenção da doença por vacina, que seria o ideal, ainda não foi atingida: a primeira evidência de uma minimamente bem-sucedida é recente -trata-se da aplicação simultânea de duas vacinas que, isoladamente, não protegem-, e 30% de imunização, que é o que foi obtido, ainda que estatisticamente significativo, é pouco.
O tratamento da infecção mostra grandes progressos: temos numerosos medicamentos que, usados adequadamente e em associação, permitem controlar a virose e impedir a evolução para a doença (Aids).
Estão disponíveis os inibidores da transcriptase reversa, nucleosídeos e não nucleosídeos, os inibidores da protease, os inibidores de fusão, os inibidores de ligação do vírus com seu receptor em macrófagos e os inibidores da integrase, permitindo tratamentos adequados inclusive para os que perderam a resposta a muitos desses fármacos.
Os problemas de tomar medicações por longo tempo e que podem desencadear efeitos colaterais são enormes: vão desde a logística da distribuição para deixá-los acessíveis a todos os que precisam deles -e, sobre essa questão, orgulhamo-nos de dizer que o Brasil resolveu bem- até o controle dos distúrbios indesejados. Todavia, isso não está bem resolvido.
A motivação do paciente para que tome todo santo dia os remédios é essencial: o motor da resistência do vírus é a seleção pelo uso inadequado, embora não seja só esse o inconveniente, porquanto vírus desse tipo, que não corrigem os erros genéticos, sempre criam variantes que ao acaso podem ficar resistentes.
Quanto menor a carga viral, melhor a prevenção da resistência, ou seja, é o uso de medicamentos que mantenham tal parâmetro sempre baixo, sem deixar intervalos que permitam que a quantidade de vírus cresça.
Alguns aspectos ligados ao vírus HIV estão bem organizados. A testagem dos sangues a serem transfundidos pode essencialmente diminuir a quase nada (nada nunca dá) a transmissão por essa via, e, se a triagem molecular fosse amplamente instalada, melhor ainda seria. Essa modalidade de exame precisa ser colocada na rotina de todos os bancos de sangue. A transmissão vertical, de mãe a feto, é minimizável -o que também envolve aspectos logísticos e de informação, que estão sendo bem definidos e satisfatoriamente implantados.
O que não tem tido progressos apreciáveis é a prevenção. Camisinha seguramente ajuda. Não obstante, campanhas centradas unicamente no preservativo não são suficientes.
Educação configura mais uma frente em que avançamos no Brasil: felizmente, aqui não se verifica puritanismo fariseu norte-americano e, por exemplo, discutimos nas escolas, sem grandes problemas, a prática sexual.
Acontece que, com frequência, ensinamos, mas nem sempre quem está na sala aprende e introjeta.
Não temos evidências no Brasil de que estejamos prevenindo infecções pelo HIV: a mortalidade, sim, caiu muito. Se serve de consolo, no resto do mundo é mais ou menos do mesmo jeito. Fatores culturais e socioeconômicos fazem com que a prevalência da infecção seja de no máximo 0,2% a 0,5% no Brasil e nos Estados Unidos, com maiores riscos em populações específicas, como hispânicos e afro-americanos. As prevalências assustadoras em países africanos, como 21% no Zimbábue e 35% em Botsuana, são devidas exatamente a fatores socioeconômicos e educacionais.
E a cura? Em síntese, hoje não temos nenhuma medicação que permita curar -e, cada vez mais, quando estudamos a biologia do vírus, notamos como vai ser árduo debelar um vírus com a capacidade de variação genética que esse tem e a habilidade para enfiar-se em reservatórios de acesso intrincado. Não queremos dizer que a cura é impossível, mas vai ser seguramente muito, muito difícil.


VICENTE AMATO NETO , 82, médico especialista em clínica de doenças infecciosas e parasitárias, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP.
JACYR PASTERNAK , 69, médico especialista em clínica de doenças infecciosas e parasitárias, é doutor em medicina pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

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