São Paulo, sábado, 02 de março de 2002

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LUCIANO MENDES DE ALMEIDA

Oração e partilha

Nas semanas que preparam a Páscoa de Jesus, as comunidades cristãs intensificam a prática da oração, do jejum e da esmola. São atitudes que manifestam e acompanham o processo de conversão de nossas faltas e de volta filial para Deus.
A oração faz-nos entrar em comunhão com o Pai do Céu, reavivando em nós a confiança e o abandono de Jesus, cujo anseio era fazer em tudo a vontade de seu Pai. Esta é a característica mais bela de Jesus: a sua união profunda e total com aquele que o ama e o envia a este mundo para nos salvar. Para Jesus, a oração não era apenas um momento de sintonia com o desígnio salvífico de seu Pai, era um deixar-se possuir pelo seu amor paterno e nele encontrar a força, a paz e a alegria interior. Jesus agradecia os dons recebidos e atribuía ao Pai todo o bem que fazia, numa vivência perfeita de quem se sabe amado e retribui doando-se com amor à sua missão.
O tempo da Quaresma convida-nos a revermos a prática de nossa união com Deus. Aqui está o cerne da atitude evangélica de conversão. Não se trata somente de, com a graça divina, afastar-se do pecado. É mais. Muito mais. Somos chamados a descobrir no íntimo de nosso ser o apelo a uma vida de intensa comunhão com Deus, que nos acompanha ao longo do dia. É uma presença constante que nos sustenta, anima e dá sentido à vida, superando toda solidão e abrindo perspectivas novas de diálogo amoroso com Deus.
Às vezes, o ritmo do trabalho e as preocupações parecem ocupar toda a atenção interior e nos fazer esquecer -por um momento- a experiência da união e da confiança em Deus. É necessário, porém, desapegar o coração do que poderia distrair-nos e, como quem procura a água, o ar, a brisa, a Lua, voltar-se logo para Deus e perceber de novo a sua insubstituível presença, a única que nos dá paz, segurança e a alegria de saber-se amado. Jesus passa pela experiência do deserto para nos ensinar a fazer a descoberta de que só o encontro com o Pai sacia e plenifica o coração humano.
Como atingir o discernimento a respeito da precariedade dos bens terrenos, libertando-nos do caleidoscópio das imagens e da agitação interna? O exercício do jejum nos ajuda a alcançar o desprendimento de atrações ilusórias e o controle de nós mesmos, evitando tudo o que prejudica a liberdade interior de nós mesmos. Temos de nos reeducar no uso do alimento, da bebida e, muito mais, na atenção interior de quem aprendeu a vencer a inclinação ao ódio, à cobiça e à busca desordenada do prazer e do poder.
Aqui se insere na tradição cristã a beleza da esmola, da doação gratuita, da partilha com os irmãos. Trata-se de um ato generoso de quem abre mão de seus benefícios e privilégios para aliviar o sofrimento dos pobres. Ajuda muito entender a esmola não como um pequeno gesto de desapego do supérfluo e do que não nos faz falta. É preciso compreender a esmola à luz da infinita misericórdia divina, como uma atitude magnânima de amor fraterno de quem dá o melhor de si aos irmãos necessitados.
Essa experiência de sincera doação ao próximo causa uma alegria maravilhosa no coração humano. Quem não se sente feliz ao enxugar as lágrimas de uma criança e ao socorrer uma família sofrida? Uma das razões da tristeza que tantas vezes nos aflige é a falta de generosidade em dar e em partilhar. Assim, o processo de conversão evangélica vem oferecer-nos a surpreendente novidade do convívio amoroso com Deus pela oração e a vivência da gratuidade da partilha fraterna. São sinais que já nesta vida anunciam a felicidade que a Ressurreição de Jesus conquistou para nós.


D. Luciano Mendes de Almeida escreve aos sábados nesta coluna.



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