São Paulo, Terça-feira, 02 de Março de 1999
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O predomínio argentino no Mercosul


Fernando Henrique foi eleito para gerar desenvolvimento e empregos no Brasil, não nos parceiros do Mercosul


IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

O mundo caminha celeremente para a formação de blocos regionais. O direito comunitário é uma nova realidade jurídica, que principia, em determinados espaços, a prevalecer sobre o direito local, como já ocorre em larga escala na União Européia. No Brasil, o STF começa a decidir questão relevante: saber se o direito comunitário do Mercosul pode prevalecer sobre as disposições constitucionais que dão autonomia absoluta a Estados e municípios para decidir sobre incentivos de natureza tributária no âmbito de sua competência, vedada a atuação da União.
Em meu livro "Uma Visão do Mundo Contemporâneo" (Pioneira, 1996) e em "Tributação sobre o Mercosul" (Revista dos Tribunais, 1997), livro que coordenei, com a adesão de insignes juristas brasileiros, realço a inevitabilidade desse agrupamento de nações visando, em cada área, fortalecer suas estruturas para ganhar competitividade, num período de globalização econômica e disputa selvagem pelos mercados.
O Mercosul teve na origem as mesmas preocupações dos países que assinaram o Tratado de Roma e de outros blocos: fortalecer a capacidade de convivência externa para dar maior força às estruturas internas dos signatários.
Ocorre que o bloco é composto de três países que detêm, juntos, 25% de seu mercado e do Brasil, que detém 75%. Assim, com a eliminação das tarifas aduaneiras, base desta etapa (o regime de exceções terminará até metade da primeira década do próximo milênio), passaram os três países a deter 75% do mercado brasileiro, para uma oferta de 25% de seu mercado próprio.
Desse modo, de um saldo comercial positivo na região (US$ 2 bilhões em 93), passou o Brasil a ter um saldo negativo do mesmo valor em 98. A Argentina, nestes quatro anos, obteve superávits na balança comercial com o Brasil, superando US$ 1,5 bilhão por ano; tendo mantido por longos anos cotas para importar veículos brasileiros, viu, com o Uruguai, sua participação no mercado do Brasil pular de 2,3% em 93 para 14,5% em 98. Internamente, a indústria brasileira, que detinha 93,6% do mercado, caiu para 76,5%!
Em outras palavras, os desempregados das montadoras nacionais perderam seus empregos para Argentina e Uruguai, que aproveitaram largamente as benesses brasileiras. Segundo declarações recentes, as multinacionais que estão no Brasil e na Argentina pretendem se autolimitar nas exportações que fazem para a segunda, visando fortalecer seus estabelecimentos naquele país à custa do desemprego no Brasil.
Dois fatores geraram, a meu ver, esse desequilíbrio. O primeiro foi, indiscutivelmente, a maior habilidade argentina em discutir as cláusulas dos tratados assinados. Seus representantes sempre tiveram a assessoria e a pressão do empresariado do país. No nosso caso, muitas vezes, os diplomatas discutiram pontos dos acordos sem se municiar dos conhecimentos técnicos e econômicos dos que aqui produzem riqueza.
Por isso a política automotiva foi tão maltratada. Além disso, a maioria das montadoras instaladas no Brasil também está na Argentina (algumas, no Uruguai). Era-lhes indiferente a defesa dos interesses nacionais: assegurado o mercado brasileiro, tanto faz o país em que se produz. Bem agiram os coreanos, cujo PIB é 60% do brasileiro: na crise, não permitiram a desnacionalização de grandes grupos empresariais.
O segundo fator foi o modelo econômico do Brasil, que se tornou um paraíso de produtos importados do Mercosul. Aqui, quatro fatores determinaram a perda de competitividade.
O primeiro foi um real sobrevalorizado, dificultando exportações e facilitando importações. O segundo, a carga tributária cumulativa, incidindo "n" vezes sobre produtos brasileiros (Cofins, PIS, CPMF) contra uma só vez sobre os do Mercosul. O terceiro esteve e está numa carga muito superior à dos outros membros (no Brasil, de 33% do PIB, contra menos de 20% na Argentina e no Uruguai e menos de 15% no Paraguai). Por fim, uma corrosiva política de juros extorsivos, por mais de quatro anos, que dificultou a competitividade e desestruturou a capacidade concorrencial brasileira. Só nos últimos tempos, com a adoção do Proex, objetivou-se ofertar aos exportadores juros idênticos aos dos demais países civilizados, inclusive os do Mercosul.
O retumbante fracasso da política cambial (mantida, no estilo de Martinez de Hoz, por Gustavo Franco) levou o Brasil, a partir de janeiro, do "artifício cambial" à "realidade", como consequência do brutal endividamento dos Estados, do déficit público permanente (numa Federação maior que o PIB) e do sucateamento do parque empresarial. Em decorrência, a perda de confiança externa, com o câmbio flutuando conforme o mercado, passou a ser o quadro verdadeiro da economia.
Não houve ataque dos especuladores, que, atraídos pelo modelo anterior, deixaram de acreditar no país. O Brasil naufragou por seus próprios erros. A economia não é pôquer, é um jogo de xadrez. As jogadas estão a descoberto; enxerga-as quem delas entender.
Ora, quando a verdade cambial se instalou, a Argentina, impulsionada mais uma vez por seus empresários, exige "compensações" que não exigia na época em que nosso câmbio era "fantasticamente" artificial, como se o Brasil devesse ser governado pelo presidente Menem e fosse função de Fernando Henrique gerar empregos na Argentina. É de lembrar que a previsão de aumento do PIB argentino para 1999 é, apesar da crise, de 5%; aqui, a previsão mais otimista é uma queda de 2%.
Infelizmente, Sua Excelência, o presidente, retirou, sem consultar o setor empresarial do Brasil, as vantagens do Proex, para beneficiar os argentinos. Assim, produtos argentinos podem chegar ao Brasil com financiamento a juros em torno de 10%; aos nossos, o governo impõe taxas de 39% ao ano.
O Brasil capitulou ante a habilidade argentina, retirando a pequena possibilidade, criada pela desvalorização, de melhorar nossas exportações para o Mercosul. Nem se diga que a desvalorização é suficiente: todos os insumos importados ficaram mais caros, e as empresas endividadas em dólar (caso de quase todas as grandes companhias do Brasil) não se beneficiam dela.
Creio ser o momento de o presidente repensar o Mercosul. Argentina, Uruguai e Paraguai necessitam dele mais do que nós. Os EUA, no Nafta, impõem seu estilo por serem o maior país. Ou nosso presidente impõe o estilo brasileiro ou o comando da integração caberá ao presidente argentino. A matéria merece reflexão, principalmente dos trabalhadores. Sendo o Brasil o quarto país do mundo em desemprego, não se pode dar ao luxo de continuar "exportando" empregos para outros países.
Espero de Fernando Henrique, em quem votei pela segunda vez, atitude mais rígida em defesa dos interesses nacionais perante o envolvente presidente Menem. Ele foi eleito para gerar desenvolvimento e empregos no Brasil, não nos parceiros do Mercosul. É o que toda a nação espera de seu líder.


Ives Gandra da Silva Martins, 64, advogado tributarista, é professor emérito das universidades Mackenzie e Paulista e da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército, presidente da Academia Internacional de Direito e Economia e do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo.



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