São Paulo, Terça-feira, 02 de Março de 1999
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Saber dolarizado


Não se melhora a educação sonhando com critérios de Primeiro Mundo e vivendo com recursos do Quarto


DILVO RISTOFF

As comparações internacionais são, em geral, odiosas porque as ações humanas se desenvolvem em tempo e espaço específicos, contextos sempre de difícil reconstituição em sua complexidade. Mesmo assim, são inevitáveis; nada é, em última análise, rico ou pobre, caro ou barato, bom ou mau a não ser por comparação. Como escrevia Samuel Johnson: "Para sabermos se uma montanha é alta ou se um rio é profundo, é preciso que tenhamos conhecido muitas montanhas e muitos rios".
Há alguns meses, por exemplo, o governo anunciava (e a mídia repetia à exaustão) que o universitário brasileiro custava aos cofres públicos US$ 14.303/ano -US$ 6.000 a mais do que a média dos países da OCDE.
Como num passe de mágica, com a recente desvalorização do real, esse valor ficou cerca de 70% menor; a menos que a mágica economicista esconda truques que nem Mister M consiga desvendar, o montante em dólares informado à OCDE pelo MEC traduz um certo número de reais. Sendo assim, o mesmo total de reais, no final de fevereiro, traduzia-se não por US$ 14.303, mas por algo em torno de US$ 8.900. Esses números, dolarizados ou não, são veementemente contestados pela Andifes (Associação Nacional de Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior). Para a entidade, o custo médio do aluno/ano é bem inferior ao propugnado pelo governo, em torno de US$ 4.500 -valor muito mais próximo da realidade perceptível a olho nu.
Independentemente dessa discrepância, que esconde metodologias diversas e interesses conflitantes, a verdade é que, enquanto os países da OCDE continuarão gastando US$ 8.871 e os EUA, mais de US$ 15 mil por aluno/ano, o Brasil reduz gastos em 70% com relação ao dólar. Num país em que a importação de livros e revistas acadêmicas é fundamental para o avanço da competência científica e tecnológica, nosso empobrecimento relativo pode ter efeito devastador. O conhecimento de ponta, infelizmente, está dolarizado.
Como golpe de misericórdia, o governo anunciou sua intenção de fazer um corte de 65% nos gastos, em reais, com assinaturas de revistas científicas destinadas à pós-graduação -todas dolarizadas. O significado é claro: professores com dificuldades de acompanhar o avanço em suas áreas de especialização, dissertações e teses com sérias deficiências bibliográficas, mestres e doutores investindo tempo, dinheiro e energia para criar o que talvez já exista.
Se nossas bibliotecas já tornavam difícil a comparação das universidades brasileiras com as dos EUA, o processo acelerado de sucateamento deverá facilitar, em breve, a comparação com Bangladesh. Pode até ser verdade que o ruim se torna bom quando o pior acontece. Mas é também verdade que não se melhora a educação sonhando com critérios de avaliação de Primeiro Mundo e vivendo com recursos do Quarto.

Dilvo I. Ristoff, 48, doutor em literatura pela University of Southern California, é professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina e secretário-executivo do Centro Interdisciplinar para o Desenvolvimento da Educação Superior. Presidiu o Fórum Nacional de Pró-Reitores de Graduação das Universidades Brasileiras.




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