São Paulo, quinta-feira, 02 de abril de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Nada aqui, nada aqui - zás!

ALDO PEREIRA


Houvesse justiça no mundo, o prejuízo deflacionário da recessão caberia aos beneficiários da pirâmide desmoronada

UM TANTO metaforicamente, o professor Celso Furtado (1920-2004) ensinava que todo surto inflacionário só acaba quando alguém o paga. Será? Quem terá pagado, então, aquela tsunâmica inflação que surfamos em aflitivo equilíbrio até a praia do Plano Real? Aparentemente, ninguém. Com o plano, todos os consumidores sentiram estufada a carteira e saíram a gastar, do que resultou memorável expansão de todos os mercados.
O povo aplaudiu a mágica e, pelo voto, pediu bis. O entusiasmo geral, contudo, não inibiu o murmúrio, entre céticos, da mesma intrigante pergunta: afinal, quem "pagou" aquela histórica inflação? A isso o saudoso professor decerto responderia: ninguém -por enquanto. A dívida da inflação passou para a geração seguinte, diluída na dívida pública.
Original? Nem tanto. No Rio de Janeiro, década de 1950, certo tenente da Aeronáutica, Felipe de tal, comprava carros a prazo e imediatamente os revendia à vista. Por menos. Na contabilidade de cada transação tinha prejuízo. Mas saía dela com dinheiro no bolso, enquanto deixava, no do otário, um maço de promissórias, as felipetas. (O trocadilho combina "Felipe" com "petas", que, na gíria da época, significava "mentira".) A princípio, aplicava parte do dinheiro apurado para resgatar felipetas no vencimento. Ampliava assim o eixo de crédito, em torno do qual fazia girar uma espiral de valores ascendentes.
O tenente pode ter aprendido o truque com Carlo Ponzi, vigarista italiano que, na década de 1920, fez efêmera fortuna com esse golpe nos EUA. Ponzi passou 13 anos na cadeia e, da Itália para onde o deportaram, veio passar seus últimos anos no Rio; morreu ali, como indigente, em 1949.
Nos esquemas Ponzi e Felipeta, o golpista honra vencimentos e resgates -e embolsa seu ganho- enquanto número crescente de investidores continuar afluindo ao "empreendimento". Pela impossibilidade matemática de essa condição persistir indefinidamente, cedo ou tarde a bolha estoura.
A desmemória coletiva favorece a recorrência episódica do golpe. Quem se lembra de que há apenas dez anos a construtora de pirâmides Encol o aplicou a 42 mil sofisticados otários? Com outros nomes, o esquema Ponzi se repete, se repete, se repete.
Quanta gente o reconhece, por exemplo, quando esta geração passa às seguintes a dívida irresgatável de conservação do planeta? Quando o último urso polar se afogar exausto, sem ter encontrado gelo onde subir para descanso, a pirâmide terá ruído.
Ou quem, no eleitorado, não se embasbaca com a mágica da dívida pública? ("Nada aqui, nada aqui, superávit primário... zás! Cadê?") Todo brasileiro que nasce agora tem devidamente seccionado o cordão umbilical, mas isso não o livrará doutra invisível placenta que irá arrastar pelo resto da vida, a dívida pública contraída por seus pais e avós.
A aula lacônica de Celso Furtado vale também por seu obverso: alguém deve pagar pela deflação que caracteriza recessões e depressões como esta. Enquanto a inflação premia quem deve, a deflação o pune. Nos dois casos, a dívida sempre cresce por efeito dos juros, mas, no período deflacionário, o valor de seu trabalho ou seu produto cai: você terá de trabalhar ou desembolsar mais para quitar a dívida na data fatal do vencimento.
Houvesse justiça no mundo, o prejuízo deflacionário da recessão caberia aos beneficiários da pirâmide desmoronada. Ou, se causada por inocente percalço, e não por malícia, a perda seria assumida igualmente por todos. Mas, sendo o mundo aquilo que é, "alguns são mais iguais". Funcionário público não é demitido nem sofre redução de provento.
Lobista que intermedeia liberação de empréstimos do BNDES ou de verbas do Orçamento não faz abatimento em suas comissões. Ongueiro que se acarrapata nas tetas de Brasília revira os olhos e assobia.
Pagarão por pecados alheios os inocentes que as empresas demitem na lógica cruel, mas inescapável, de não empregar quem não tiver o que produzir, nem produzir artigos para os quais não haja comprador.
Antídoto da deflação, naturalmente, é urgente injeção de dinheiro: inflação emergencial induzida. Nesse caso, ministrada aos trilhões (um é pouco, só começo). Daí o banco central dos Estados Unidos trocar retratinhos recém-impressos de Benjamin Franklin por títulos do Tesouro. Que valor real resulta dessa transmutação alquimista de papel em papel? Nenhum. Felipetas.
Mas tudo isso passa. Passa à geração seguinte.


ALDO PEREIRA , 76, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha.

aldopereira.argumento@uol.com.br

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